Poucas vezes na mitologia, o amor entre um deus e um mortal terminou de maneira feliz.
Isso, porque existe algo intrínseco na cultura greco-romana que nos avisa, de inúmeras maneiras, a jamais nos igualarmos aos deuses. Havia, inclusive, um antigo rito realizado na Roma Antiga, conhecido como “triunfo romano”, que ilustra bem essa premissa. Sempre que um general ganhava alguma batalha importante para o império, ele desfilava pelas ruas da cidade revestido por tesouros. No entanto, um escravo era selecionado para prostrar-se às suas costas, segurando uma coroa por cima de sua cabeça, e constantemente sussurrar-lhe “memento mori” no ouvido, uma expressão latina que significa “lembre-se que você vai morrer”.
As desgraças que recaem sobre os mortais que apaixonam-se por deuses e o ritual do triunfo romano são símbolos poderosos para a cultura antiga, não somente por um apelo moral sobre o lugar dos “meros mortais” abaixo da autoridade divina, mas como compreensão do que é, filosoficamente, ser humano. Felizmente, a jornada do autoconhecimento pode ser alegre, ao final de muitos pesares. É a história da nossa própria alma, ou, em grego, de Psique, cujo mito contaremos adiante.
A princesa Psique era bela. Não simplesmente bela, mas de tamanha beleza que frequentemente era comparada com a da própria Afrodite. A deusa, cumprindo seu papel na cultura antiga de não permitir que mortais se igualem aos deuses, ficou furiosa e planejou uma punição para a moça. Lançou sobre ela a maldição de que se casaria com a Morte.
Os pais de Psique choraram por dias em lamentação pelo seu destino, mas, no seu casamento, levaram-na para o alto de uma montanha para ser acorrentada e entregue ao marido mortífero. Afrodite, então, enviou o filho Eros — conhecido como Cupido, pelos romanos — para acertar suas flechas do amor na donzela e fazê-la se apaixonar por alguma besta qualquer que cruzasse seu caminho.
Eros, que era deus do amor não correspondido, cometeu o primeiro erro de sua existência e feriu-se com as próprias setas enquanto contemplava Psique acorrentada. Ele se apaixonou por ela imediatamente, decidindo, portanto, salvá-la e tomá-la como esposa.
O deus construiu para os dois uma cidadela inteira nas nuvens, com um gigantesco palácio e ninfas que serviriam e atenderiam a todas as necessidades de Psique. Mas havia uma condição para que a mortal continuasse com ele no lugar que batizaram de “Paraíso”: ela jamais poderia ver a verdadeira forma de Eros, que sempre estava coberto por um capuz ou pelas sombras, nem fazer perguntas sobre sua natureza.
Assim viveram por longos meses, felizes. Porém, quando as irmãs de Psique a visitaram, plantaram nela a “sementinha da dúvida”, argumentando que, se seu marido nunca mostrara o rosto, era porque ele, na certa, deveria ser um monstro horrendo. Talvez, de fato, a própria Morte. Tomada pelo medo e pela curiosidade, Psique ouviu o aviso das irmãs e, na calada da noite, armou-se de um punhal e buscou uma vela para iluminar seu caminho até os aposentos do marido.
A moça posicionou-se ao lado da cama de Eros e aproximou a vela para ver, enfim, seu rosto. Ela foi, porém, acometida por uma profunda surpresa, pois no lugar de um monstro, havia ali uma criatura belíssima, um rapaz esbelto com longas asas de anjo saindo das costas. Psique deu um passo vacilante para trás e espetou-se numa das flechas do deus, apaixonando-se por ele.
Infelizmente, Psique cometeu outro erro: deixou a vela inclinada demais, fazendo com que um pingo de cera quente caísse sobre o peito desnudo de Eros e ele despertasse com a dor. Naquele instante, o deus voou para longe e todo o Paraíso se desintegrou, deixando a triste noiva sozinha no mundo dos homens.
Como com o casal bíblico Adão e Eva, que foram expulsos do Éden ao provarem do “fruto do conhecimento do Bem e do Mal”, o estado de consciência de Psique a fez ser expulsa do próprio Paraíso. Isso também é um sinal de como os mitos antigos querem passar uma mensagem sobre o que é ser humano para nós: ser mortal é ter consciência de que se vai morrer. As plenas criaturas que vivem conosco, como nossos cães e gatos, vivem para sempre, simplesmente porque não conhecem o que é a morte. Memento mori.
O fim, porém, não foi este. Psique foi rogar por ajuda a ninguém menos que Afrodite, que concordou em fornecer apoio para reuni-la com o filho querido, se a mortal realizasse tarefas quase que impossíveis. Cada uma delas fez a moça pensar — e tentar — suicídio, por não ser capaz de vislumbrar sucesso.
O final é alegre. Psique faz tudo o que Afrodite lhe exige, prova seu amor a Eros e torna-se deusa. Os dois se casam e têm uma bela filha chamada Prazer. O raro, porém precioso, desfecho feliz prova que o conhecimento da Alma (em grego “Psique”) pode ser visto muitas vezes como uma maldição, um flerte com a Morte ou uma expulsão do Paraíso.
O conhecimento da nossa condição enquanto mortais, no entanto, nos permite um dos maiores prazeres de toda a existência: decidir como trilhar os caminhos da vida, amando-a plenamente e permitindo-se fazê-la feliz.
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