29 de janeiro marcou uma data importante: O Dia da Visibilidade Trans. Ela marca o dia em que, no ano de 2004, ocorreu um ato organizado em Brasília, no qual se reivindicava respeito às travestis, mulheres e homens trans no Brasil. Nosso país é muito violento com essas pessoas, cotidianamente. Muitos direitos lhes são negados, inclusive o direito a amar e ser amada/o. Essa data marca a necessidade de discutirmos essas questões.
É importante, antes de falar desse direito ao amor, tentar esclarecer algumas coisas. “Pessoas trans” ou “pessoas transgêneras” é um termo “guarda-chuva” que se refere às pessoas cujas identidades vão se construindo em contraposição ao que foi estabelecido para elas no seu nascimento (ou mesmo antes disso). Esse ritual é muito comum: quando se sabe de uma gravidez, uma pergunta fundamental é sobre o que popularmente se diz como o “sexo do bebê”. “Qual o sexo?”, “Já sabe o sexo?”, “É menino ou menina?”, são perguntas ouvidas com muita frequência por uma pessoa grávida. Junto a isso, em geral, as famílias vão construindo um pré-roteiro do que será a vida da criança, comprando o enxoval e arrumando o quarto com cores correspondentes ao gênero do bebê – azul ou rosa; comprando brinquedos e outros objetos igualmente correspondentes; traçando perfis de comportamento e personalidade que seriam adequados ao “sexo” daquele ser que nascerá e passará a fazer parte de um mundo já organizado de acordo com padrões fortemente arraigados.
Nesse mundo organizado de acordo com o “sexo”, pessoas que não seguem o roteiro determinado podem ser relegadas ao lugar de desviantes, doentes, anormais. Esse “sexo” é atribuído ao olhar para os corpos: se têm pênis, é um menino; se tem vulva/vagina, é uma menina. Isso define uma “pessoa cis” ou “pessoa cisgênera” – outro termo “guarda-chuva” para falar das pessoas que ao nascer são designadas como meninos ou meninas, e ao longo de suas vidas assumem uma identidade de gênero que corresponde a esse fato. Mas, essa atribuição pretensamente natural basta para definir quem nós somos? Basta para definir quem podemos ser, que vidas podemos viver, como devemos nos comportar, pensar, sentir, desejar, amar?
As pessoas trans nos ensinam que não: o corpo, como designado na gestação ou no nascimento, não é o bastante. Ao longo de suas existências, as pessoas trans nos mostram que sentir-se como mulher, como homem ou até mesmo sentir-se não pertencente a qualquer gênero, não depende do órgão genital. Porém, aquele mundo pré-organizado, ao qual me referi, insiste em enquadrar as pessoas segundo esse critério biológico. E isso gera muitos sofrimentos, pois serve de base para discriminações e violências e alimenta a incompreensão das pessoas, limitando nossas relações.
Pessoas trans amam e querem ser amadas. O amor – esse que foi se constituindo como um direito básico, às vezes até excessivamente imposto como sinônimo de felicidade – é algo frequentemente negado às travestis, mulheres e homens trans. A incapacidade de amar e de ser amada/o lhes é atribuída pelo motivo de não serem vistas como pessoas, como quaisquer outras, que trabalham, estudam, se divertem e, inclusive, têm vidas amorosas. Isso parece ficar mais evidente quando uma pessoa trans se relaciona afetiva e/ou sexualmente com uma pessoa cis: parece tratar-se de um relacionamento enganoso, falso.
Vou trazer um exemplo comum. Quando uma mulher trans se relaciona com um homem cis trata-se de um relacionamento heterossexual. Por princípio, o relacionamento entre uma mulher e um homem é heterossexual. Certo? Muitas pessoas têm dificuldade de entender isso. Acham que o homem é gay por se relacionar com uma mulher trans. Isso é completamente equivocado! O mesmo se aplica no caso de um homem trans se relacionar com um homem cis. São dois homens, o que socialmente é interpretado como uma relação homossexual. Pessoas trans podem ser heterossexuais, bissexuais, homossexuais, pansexuais assim como as pessoas cis. Sua identidade de gênero e seu desejo sexual são coisas diferentes.
Essas incompreensões sobre os gêneros acabam por gerar medo, inseguranças e sofrimentos. Muitas pessoas trans se sentem solitárias, pois não encontram pessoas dispostas a assumir com elas uma relação amorosa devido aos inúmeros preconceitos que envolvem a transgeneridade. Homens cis têm medo de assumir relacionamentos com mulheres trans e travestis e serem classificados como gays. Sentem receio em apresentar a namorada para a família e amigos/as e serem julgados. Em consequência disso, as pessoas trans carregam o estigma de serem vistas apenas como fetiches, pessoas hipersexualizadas, que servem ao objetivo de satisfazer as fantasias de outros . Quantos sofrimentos poderiam ser evitados…
O amor não pode ficar restrito aos órgãos sexuais. Como se amar fosse uma capacidade natural apenas para pessoas cisgêneras. Somos muito mais que isso. Querer estar com alguém nos desafia a olhar para pessoa além dos corpos, da forma física, dos rótulos. Sim, é um desafio, pois somos produto de sociedades e culturas que valorizam exatamente que nos relacionemos pela capacidade de reconhecer no outro atributos corporais valorizados – beleza, forma física, juventude, peso, cor da pele, entre tantos outros.
Todas as pessoas têm direito a amar e serem amadas, se essa for sua vontade. Direito a se relacionar amorosamente com pessoas que as respeitem, com quem possam dialogar, construindo uma vida em comum. O que faz esse amor ser legítimo não é seu órgão genital ou o gênero que elas expressam em seus corpos. Em tempos de tanto ódio e intolerância, somos desafiados/as a nos relacionarmos com as pessoas, quaisquer que sejam as relações – familiares, conjugais, de amizade, de trabalho, etc. para além dos rótulos.

Você já parou para pensar nisso?