Cresci numa casa (em dois apartamentos, melhor dizendo) onde o interesse pelas artes era visto com bons olhos. Mais do que isso: era incentivado. Frequento museus e exposições desde pequeno. Foi numa Bienal de São Paulo, por exemplo, onde conheci o trabalho de um dos meus artistas visuais favoritos até hoje: Alex Vallauri. Um dos precursores do grafite como manifestação artística, ele criou personagens como a “Rainha do Frango Assado” e foi um dos muitos nomes que o vírus HIV tirou de cena na virada dos anos 80 para a década seguinte. É um artista que deveria ser mais lembrado hoje em dia.
Moramos alguns anos na Fonte da Saudade, na Lagoa, e um dos lugares ao qual eu e minhas irmãs éramos levados era o Parque da Catacumba. Aquele simpático espaço era chamado por nós de o “Parque da Mulher Pelada”, numa referência a uma das estátuas ali expostas. A nudez nunca foi um tabu lá em casa. Sempre foi vista como algo natural. O que nunca fez daquele apartamento uma sucursal, digamos assim, da Praia do Abricó.
Em 1987, quando tinha 11 anos, e já morando no Jardim Botânico, comecei a assistir a minhas primeiras peças adultas. Uma delas foi a montagem de “Lúcia McCartney”, adaptação da novela homônima do grande Ruben Fonseca. A personagem-título, para quem não sabe, é uma prostituta que se vê envolvida com um de seus clientes. A peça despertou em mim a curiosidade em ler o texto original e esse mesmo texto foi a mola propulsora para eu chegar a outros livros do escritor, pelo qual tenho grande admiração.
E o porquê de todo esse preâmbulo? Esse contato com diferentes manifestações artísticas (exposições, teatro e literatura) foi fundamental para eu me tornar o ser humano que sou. Um cara que tem no jornalismo e na literatura suas vocações e seu ganha-pão. Falo aqui de ciências humanas, mas esse mesmo contato poderia ter me levado às ciências exatas.
Recentemente, a mostra de arte “Queermuseu” teve sua temporada cancelada no Santander Cultural, em Porto Alegre. Ela tinha como uma de suas propostas discutir as questões de gênero. Um dos motivos alegados pelos grupos que a repudiaram era o de que incitava a pedofilia (?!) e a zoofilia (?!). Uma das telas apontadas como justificativa traz a pintura de uma criança trajando calção de banho sob a inscrição “Criança viada, rainha das águas”.
Essa suspensão suscitou toda uma discussão que acho salutar, uma vez que estamos numa democracia (resta saber até quando). Em contrapartida ao patrocínio recebido, a mostra deveria receber grupos escolares, o que levou os incomodados a evocar o Estatuto da Criança e do Adolescente etc. Há poucos dias, li que o Museu de Arte do Rio (MAR) tinha interesse na “Queermuseu”. Tal aceno ganhou do prefeito Marcelo Crivella um balde de água fria. Num vídeo, o político demonstrou-se contrário à ideia e fez o que chamo de samba-do-prefeito-doido. Ao criticar a mostra, deu como exemplo o episódio da performance “La Bête”, apresentada no MAM de São Paulo e na qual um artista nu teve os pés tocados por uma criança. Crivella mostrou, por fim, que o bom humor não é o seu forte. Disse que, se fosse o caso de a mostra vir ao Rio, que fosse para o “fundo do MAR”. Era para rir?
Diante da volta atrás do MAR, o Parque Lage demonstrou interesse em exibir a mostra. Há só uma pedra no caminho: a falta de recursos para os seguros das obras, entre outras despesas.
Um grupo de artistas está empenhado em ajudar a resolver o impasse. Tomara que consigam. Vou gostar de assistir ao “Queermuseu”. Vejo como positiva toda essa visibilidade dada às questões de gênero, que tem na novela “A força do querer”, campeã de audiência, o canal para o tema chegar a todos os rincões do país.
Independentemente disso, ir a uma exposição é um direito que tenho como cidadão. E esse direito não pode ser cerceado por nenhuma instância política ou jurídica. Liberdade antes de tudo. Liberdade para se expressar e para prestigiar as muitas manifestações artísticas produzidas país afora. Se elas têm qualidade? Cabe então confiar no crivo dos curadores e também no seu senso crítico. Se algo te incomodou, repense o que este incômodo te provoca. Caso a resposta não seja positiva, basta não recomendar o que viu a nenhum de seus conhecidos. Simples assim.
E já que o dia 12 de outubro está na cara do gol, deixo um beijo em todas as crianças.
Viadas ou não.
Tempos complexos vivemos.