Precisamos proteger nossas crianças”, “defender a família”, afirmou o Prefeito do Rio de Janeiro, ao determinar que organizadores da Bienal na cidade recolhessem livros com “conteúdos impróprios” para menores. E vocês sabem qual era o “conteúdo impróprio”? Uma HQ que trazia em sua narrativa a história de dois heróis – Wiccano e Hulkling, que mantêm um relacionamento amoroso. O que escandalizou o Prefeito e a corja conservadora que o acompanhou nessa tentativa de censura foi um beijo. Será que ele nunca havia visto um beijo como esse? A publicação traz alguma novidade? Dois jovens homens se beijam e isso aterroriza aqueles/as que veem o mundo numa perspectiva monocromática, monótona, normativa. Do que as crianças precisariam ser protegidas nesse caso? Da imagem desse beijo? Qual o perigo nesse beijo?

Esse episódio absurdo de nossa história recente nos faz pensar nesse argumento de que as crianças devem ser protegidas. Um vereador da cidade do Rio de Janeiro, nessa ocasião em que se soube que havia um beijo entre dois homens numa HQ na Bienal do Livro, apresentou moção de repúdio, alertando aos pais de que ali havia um livro que “propagava o homossexualismo para as crianças[1]”. O pânico moral instalado em nosso cotidiano alimenta essa aversão e medo históricos de sujeitos que expressam suas formas de amar e de desejar em desacordo com certos padrões, que tornaram natural ver um homem e uma mulher se beijando e não dois homens ou duas mulheres. Sob essa lógica, nós teríamos que proteger as crianças dessas criaturas grotescas, desses monstros que ousam expressar formas de afeto e desejo que não aquelas consideradas moralmente corretas. O perigo é que, ao ter contato com esses afetos, ao notar que essas relações existem, as crianças possam se interessar por elas e, possivelmente, se tornarem esses sujeitos desviados das normas.

Do que as crianças precisam ser protegidas? A Internet nos apresenta, cotidianamente, inúmeras violações do que seriam os direitos mais fundamentais a serem garantidos para crianças e jovens. Lemos e assistimos às notícias de crianças vivendo nas ruas das cidades, pedindo esmolas nas esquinas, famintas, sendo obrigadas a trabalhar; crianças sendo submetidas às mais diversas situações de negligências e violências de toda a ordem.

Recentemente, foi noticiado[2] que meninas estavam participando de um quadro em um programa de um canal de TV aberta, intitulado Miss Infantil, um concurso de beleza em que elas desfilavam e exibiam seus corpos infantis trajadas apenas com maiôs. O apresentador do programa dizia: “Vocês do auditório vão ver quem tem as pernas mais bonitas, o colo mais bonito, o rosto mais bonito, e o conjunto mais bonito”. Meninas de até dez anos sendo objetificadas, expostas em situações de erotização e imposição de parâmetros de beleza arbitrários. Quem se escandalizou? O prefeito do Rio de Janeiro? O vereador? Os/as conservadores/as?

Entre as diversas situações de negligências e violências a que me referi anteriormente, podemos falar dos inúmeros casos de violências sexuais sofridas pelas crianças. Notícias[3] divulgadas por ocasião do “Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes” (18 de maio), nos mostram que o Disque 100, através do qual se pode denunciar situações de violações dos direitos humanos, recebe cerca de 50 denúncias diárias sobre crimes sexuais cometidos contra crianças e adolescentes no Brasil. Foram mais de 4.700 denúncias até o mês de maio de 2019. Isso só para dizer dos casos denunciados, porque, como podemos imaginar, muitas dessas violências são silenciadas. Em mais 70% desses casos, as violências acontecem dentro de casa e são praticadas por pessoas conhecidas, aquelas que deveriam cuidar e proteger as crianças (pais, padrastos, avôs, tios…). Nesse caso, o que significaria, como propõe o Prefeito, “defender a família”?

O que isso nos diz sobre o episódio de censura a uma HQ que trazia dois heróis se beijando? Do que as crianças e jovens precisariam ser protegidas/os? A imagem de um beijo numa HQ ou em outros artefatos culturais poderia transformar as crianças em gays, em lésbicas? Talvez, possamos reformular algumas dessas perguntas. Que beijos, trocas de afetos, relacionamentos, amores encontramos com maior frequência nas revistas, livros, filmes, séries, novelas, HQ’s, histórias infantis? Por que não estranhamos essas expressões de afeto e desejo quando elas acontecem entre homens e mulheres? Por que livros e outros materiais da Bienal do Rio de Janeiro, que continham beijos e outras expressões de afeto e de desejo, não foram consideradas ameaçadoras? Não foram objetos de escândalo? Por que apenas livros que dizem respeito às pessoas LGBTI+[4] precisam ser, como afirmou o Prefeito do Rio, “embalados em plástico preto lacrado e do lado de fora avisando o conteúdo”? Por que apenas esses livros podem ser classificados como “pornográficos” e “obscenos”?


[1] A fala do vereador pode ser conferida na reportagem disponível em: https://revistaforum.com.br/brasil/marcelo-crivella-censura-bienal-do-livro-do-rio-de-janeiro/

[2] Notícia a respeito pode ser conferida no seguinte endereço: <https://revistaforum.com.br/comunicacao/silvio-santos-coloca-meninas-de-ate-10-anos-para-desfilarem-de-maio-e-exibirem-o-corpo/>.

[3] Notícia pode ser lida em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2019-05/disque-100-recebe-50-casos-diarios-de-crimes-sexuais-contra-menores>.

[4] Referência a Lésbicas, Gays, Bissexuais, pessoas Trans (Travestis, Transexuais, Transgêneros), Intersexuais e outras identidades divergentes das normas).

Imagem do texto: Sharon Mccutcheon

Imagem da capa: Shelly Pence