A quarentena imposta pela pandemia do coronavírus tem impactos para além do adoecimento físico. Mudaram os modos de conviver e de nos relacionarmos. Uma palavra se incorporou ao vocabulário cotidiano: isolamento. Ouvimos frases que foram se tornando verdadeiras palavras de ordem: “Fique em casa!”, “Proteja quem você ama”, “Mantenha o isolamento”. Essas recomendações, que têm por base a ideia do isolamento social, nos fazem pensar em seus possíveis desdobramentos. As relações são diretamente afetadas. Os relacionamentos amorosos-sexuais são colocados em questão, já que, em muitos casos, muda-se a convivência diária entre as pessoas que se relacionam. Antes de prosseguir, tenho que fazer uma ressalva. O isolamento social é uma medida que tem, para quem tiver ‘lentes’ que enxerguem isso, um recorte socioeconômico, étnico-racial e de gênero, basta que façamos a seguinte pergunta: quem pode ficar em casa? Sabemos das desigualdades de nosso país e isso afeta, fortemente, os direitos mais fundamentais, incluindo, os cuidados com a saúde[1].
Para escrever este texto me baseio nas notícias que venho lendo pela Internet. Nelas, profissionais da Psicologia são consultadas/os e apontam os impactos da pandemia nos relacionamentos, sugerindo caminhos para uma convivência mais harmônica. Basicamente, elas/es destacam duas configurações. A primeira, diz dos casais que se viram obrigados a isolar-se, deixar de se relacionar fisicamente nesse período de quarentena, mantendo-se em ambientes sociais distintos (cada um/a na sua casa). A ideia de que o distanciamento físico por precaução se une ao distanciamento por cuidado, por preocupação, por amor ao(s) outro(s), ou seja, por medo de expor o outro ao risco. As/os profissionais entrevistadas/os mencionam a agonia do distanciamento, o sentimento de falta do outro – do toque, do beijo, do sexo, o que nos leva a pensar em como esse tipo de interação é importante, embora no nosso dia-a-dia corrido nem sempre nos demos conta disso[2]. Surge também a possibilidade da interação virtual, por meio de redes sociais, que ajudariam a diminuir a falta do outro.
A segunda principal configuração diz dos casais que passaram a ter que conviver intensamente, num cotidiano que os impede de sair de casa. O direito de permanecerem isoladas socialmente, para as pessoas que optaram em se manter junto ao(s) seu(s) parceiro(s) e parceira(s), coloca as pessoas em um tipo de convivência que antes não viviam. Uma convivência em intensidade. Seria uma lua de mel? Uma convivência diária, juntas(os), 24 horas sem se separar. Talvez, essa seja uma novidade até para casais que vivem juntos há muito tempo, pois não tinham tido a oportunidade de conviver num mesmo ambiente por um período tão prolongado. O que poderia ser interpretado como uma lua de mel, pode caminhar para outras direções, que são apontadas pelas/os especialistas ouvidas/os nas reportagens[3]: problemas pendentes vão emergindo; medos, ansiedades e incertezas próprios do contexto desconhecido e imprevisível da pandemia afetam a relação, produzindo interações desarmônicas; a sensação de que o outro deve estar o tempo todo disponível, exigindo uma postura de respeito, de ter que relevar ‘defeitos’, adaptando-se à nova rotina.
Algumas das notícias mencionam que, em certos lugares, a pandemia resultou em um aumento nos pedidos de divórcio. Junto a isso, passaram a circular vídeos e memes satirizando o cotidiano de casais que intensificaram a convivência doméstica. Em geral, tais vídeos e memes apresentam o homem como sendo obrigado a realizar tarefas atribuídas às mulheres. A sátira aparece em pedidos de socorro, nos quais os homens deixam claro que precisam ser resgatados de um cárcere, e que suas esposas seriam as carrascas dessa nova rotina. O homem estaria sendo ‘escravizado’ pela mulher. Esse tipo de situação, visibilizada pelo contexto da pandemia, expõe o machismo que organiza as relações amorosas e sexuais, pautado na definição de lugares sociais e de certas tarefas – o contexto doméstico e as atividades domésticas seriam naturalmente designadas às mulheres; os homens, quando muito, ‘ajudam’ em alguma atividade, já que a responsabilidade recai, geralmente, sobre elas. O humor dos vídeos e memes, fabricados para ‘distrair’ em tempos de ansiedade do confinamento, mostram que não há constrangimento nesse ‘contrato subjetivo’ que organiza as relações: os homens poderiam, assim, se ‘rebelar’ contra as ‘esposas tiranas’, que os estariam forçando a tarefas que não lhes cabem.
Esse é um dos efeitos que a pandemia pelo coronavírus provoca nas relações: a sobrecarga de trabalho não-remunerado doméstico para as mulheres. Um outro, que penso ser muito importante mencionar, é sobre as mulheres que vivenciam relacionamentos abusivos, violentos, tendo que permanecer confinadas com seu parceiro violento. A mulher, nesse contexto, está afastada de outros espaços e pessoas que costumam oferecer acolhimento ou que se constituem em redes de apoio (família, trabalho, estudo, amizades). Isso quer dizer que as medidas restritivas de isolamento podem intensificar situações de violência – para quem já vive num ambiente violento, a quarentena vulnerabiliza ainda mais as mulheres. E não necessariamente são apenas violências físicas, mas também o desrespeito, as intimidações, os abusos verbais e constrangimentos. Sem a possibilidade de sair, ficando em casa, o agressor pode exercer o comportamento violento com mais frequência. Além disso, o aumento das tensões, como as ligadas ao aspecto financeiro, pode produzir mais situações de violência[4].
Para além de pensar na manutenção dos relacionamentos e nos efeitos da convivência intensa que a pandemia produz para os casais que se amam e querem permanecer juntos/as, precisamos pensar nos efeitos desse contexto sobre questões que não são novas – o machismo e a violência são vividos cotidianamente nos relacionamentos amorosos e sexuais –, mas que se tornam agudas com a necessidade do distanciamento social. “Fique em casa” é uma recomendação que deve ser acompanhada de um cuidado: o lar e os relacionamentos nem sempre são lugares de proteção, e amor nem sempre é sinônimo de cuidado e respeito. Pensemos nisso.
[1] Sobre isso, leia a seguinte coluna: https://theintercept.com/2020/03/17/coronavirus-pandemia-opressao-social/. Acesso em: 13 abr. 2020.[2] Sobre isso, leia a seguinte reportagem: https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2020/04/06/interna_gerais,1135904/quarentena-contra-o-coronavirus-vira-teste-de-fogo-para-casais.shtml. Acesso em: 13 abr. 2020.[3] Sobre isso, leia a seguinte reportagem: https://gauchazh.clicrbs.com.br/comportamento/noticia/2020/04/como-casais-estao-se-virando-com-isolamento-imposto-pela-pandemia-de-covid-19-ck8kh8bqd01be01pmqlao47f1.html. Acesso em: 13 abr. 2020.[4] Sobre essa questão, leiam as seguintes reportagens:
(1) https://vogue.globo.com/atualidades/noticia/2020/03/violencia-domestica-cresce-durante-isolamento-social-decorrente-do-novo-coronavirus.html. Acesso em: 13 abr. 2020.
(2) https://www.huffpostbrasil.com/entry/violencia-domestica-coronavirus_br_5e73c8bfc5b6eab77944ae36. Acesso em: 13 abr. 2020.
Fotos: Engin Akyurt
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