Existe um mito da Grécia Antiga que é frequentemente interpretado como uma representação poética da paixão avassaladora de todo artista por sua obra, trata-se dahistória do homem que se apaixona pela donzela de mármore que esculpira, um romance bem ao estilo Pinóquio. No entanto, uma análise diferente permite-nos enxergar na relação de autor e estátua, a constante que assombra o inconsciente das mulheres no mundo real.

Segundo as belas palavras do poeta Ovídio, Pigmalião era rei na ilha de Chipre ― local em que a deusa do amor, Afrodite, teria sido levada pelas ondas do mar, após nascer do choque dos testículos do deus-céu Urano contra a água salgada ― e também era um talentoso escultor. Após anos de reinado, porém, ele jamais tomara mulher alguma como esposa.

Como lar da deusa do amor e da sexualidade, toda a atmosfera de Chipre pulsava vitalidade e prazer. As sacerdotisas mais renomadas de Afrodite eram as “prostitutas sagradas”, aquelas que, resguardadas em seus templos, ofereciam o corpo para aqueles que ali fossem e coletavam o dinheiro para manter o espaço. O sexo era a forma mais pura de adoração à deusa, mas Pigmalião não considerava nenhuma mulher de sua ilha luxuriosa decente o suficiente para casar com ele.

O artista só encontrava consolo em sua obras. Uma delas em particular. Galatéia era a estátua de mármore em forma de donzela que havia exigido muito de seu esforço e tempo, mas que terminou por ser a melhor coisa que já fizera. Os traços tão perfeitos da moça lhe davam aparência de real, mas Galatéia era melhor que o real. Não depois de muito tempo, Pigmalião apaixonou-se por ela.

Ele vestiu a estátua com as roupas, cores e adornos que achava mais bonitos, pintava-a quando queria e, ao beijá-la nos lábios, sempre era recebido com reciprocidade.

Pigmalião passou longas noites de amor com sua obra-prima, até que a angústia tomou conta de seu coração. Galatéia não se movia, não lhe respondia, não respirava. Não era o suficiente.

Numa noite, ele subiu até o templo de Afrodite e implorou à padroeira de sua cidade que pudesse fazer de Galatéia uma mulher que pudesse desposar. Compadecida pelas lágrimas do rei, a deusa concedeu seu desejo. Quando ele retornou para casa, sua estátua tornara-se de carne e osso. Os dois se casaram e tiveram dois filhos.

Pigmalião e Galatéia estão mais presentes de nós do que pensamos. Numa realidade em que o prazer do homem e seus ideais de beleza e desejo são priorizados, os corpos femininos são esculpidos, depilados, pintados, alisados e clareados para atender um padrão construído. Tudo o que é intrinsecamente natural às mulheres é visto com repulsa pelo senso comum: pêlos, cheiros íntimos, estrias, gorduras, seios que alimentam filhos, sangue menstrual e por aí vai.
As mulheres tornam-se estátuas a serem beijadas e desnudas sempre que os reis e artistas desejam. O controle do corpo feminino sobre si mesmo, da Grécia Clássica até os dias de hoje, não é apenas um tabu, mas um conceito que se afasta de antigos valores, arraigados em terreno emocional, racional e até mesmo sexual dos indivíduos ocidentais.