Fácil é o descenso ao Inferno; pois as portas negras do Submundo ficam
abertas noite e dia. Mas, refazer seus passos e voltar para a brisa acima – essa que
é a tarefa, essa que é a labuta
Vírgilio, sobre Orfeu e Eurídice em ‘Eneida’.
Quem não se apaixona pelas histórias de amor que desafiam a Morte? O mito grego de “Orfeu e Eurídice” é um dos mais famosos neste quesito, já que nos faz imaginar quais fronteiras cruzaríamos e a que ponto mudaríamos a ordem natural do mundo por aqueles que amamos.
Em primeiro lugar, é vital entender que aqueles eram tempos em que a fronteira entre deuses e homens era tênue, portanto, era comum que nascessem filhos da união passional entre as duas raças. Tal como o grande Hércules, filho de Zeus, e Teseu, filho de Poseidon, Orfeu era filho de Apolo, deus das artes e do sol, e dele recebeu o dom da música.
Quando Orfeu parava para dedilhar sua lira, todos paravam para escutá-lo; animais se agrupavam ao seu redor para adormecer sob a melodia de seus instrumentos; flores cresciam e árvores se curvavam para mais perto de seu canto; o vento se silenciava para que sua voz pudesse ecoar sem limite algum, e todas as mulheres ― mortais e imortais ― o amavam.
Orfeu, muito embora, apaixonou-se por uma (e apenas uma) mulher em sua vida. E foi com ela, Eurídice, que nosso herói pôde experimentar a plenitude de um casamento feliz, mas por pouco tempo. As Moiras, que dominavam o destino de todos os Homens, tinham fama de ser cruéis. Num dia chuvoso em que Eurídice fugia das mãos ansiosas de Aristeu, um pastor que desejava violentá-la, a moça caiu em um ninho de cobras e morreu envenenada com as mordidas e picadas.
O filho de Apolo, enlouquecido pela dor e pelo luto, jurou que nada o impediria de trazer a amada de volta. E por essa promessa ele viajou até as portas do Mundo Inferior. Segundo as velhas lendas, todas as almas que passassem por aqueles portões deveriam pagar o barqueiro Caronte, com os dracmas (moeda grega) deixados em seus olhos ou na língua nos rituais fúnebres. Só assim, eles poderiam ser levados até a outra margem do rio Estige, onde poderiam receber o julgamento que ditaria como passariam a eternidade.
Orfeu cantou todo seu amor por Eurídice para o barqueiro dos mortos. Emocionado, Caronte combinou que atravessaria o Estige com o apaixonado até os portões do palácio de Hades, que era seu limite.
Foi essa mesma música que adormeceu o feroz guardião das portas do castelo sombrio, Cérbero, o cão de três cabeças, e fez também derramar no Senhor do Submundo uma lágrima de ferro. A primeira e única lágrima derramada em Hades, rei dos mortos, em toda existência.
Assim, o monarca permitiu que Orfeu retornasse com sua esposa, porém, com uma condição: os amantes não poderiam olhar-se nem tocar-se, de forma alguma, enquanto refaziam seus passos até o mundo dos vivos. Mas o caminho era traiçoeiro, cheio de dor daqueles que foram esquecidos. Recobrando a consciência, Eurídice pedia esclarecimentos para seu guia. Gritava para que ele lhe dissesse o que estava acontecendo. Foi quando os dois amantes estavam angustiadamente próximos do seu destino, que Orfeu virou-se e olhou a amada nos olhos, sem conseguir suportar o silêncio, e a viu ser arrastada de volta pelas sombras, perdendo-a novamente.
Dizem que, mais tarde, Orfeu teria calado sua lira e sua voz por não ser mais capaz de cantar sem a amada, atraindo a fúria das Bacantes ― servas do deus Dionísio ― que o atacaram e os esquartejaram por conta da ausência de sua música e da falta de seu amor. Dizem que, apesar de morto, a cabeça de Orfeu costumava prever profecias. No entanto, algo era certo: pela sua música mágica, o filho de Apolo garantiu sua eternidade nos Campos Elíseos. E, como recompensa pela beleza de suas melodias, os deuses permitiram que lá estivesse Eurídice, esperando-o de braços abertos.
Deixar um comentário