O que na nossa cultura é grande tabu, para os antigos gregos era parte da vida religiosa, cívica e cotidiana. Hoje, a comunidade LGBTQ+ é marginalizada, invisibilizada e vítima de inúmeros ataques. Nas tradições míticas gregas, porém, é possível encontrar diversa representatividade entre os deuses da mais alta hierarquia olímpica e entre os heróis mais bravos.

APOLO. O deus brilhante, guia do sol, aquele que detém o domínio de todos os limites, deus da medicina e da purificação sagrada, da arte da forma ― a escultura, a música, os sonhos ― e senhor da verdade. Apolo é conhecido pelo epíteto “longiflecheiro”, por ser um arqueiro como sua irmã Ártemis, mas também por ser uma figura divina que se distancia. Apolo nunca entra no furor da batalha ou no frenesi da orgia, dessa forma, todas as suas relações amorosas terminam em fracasso. Uma delas foi Jacinto, um jovem pastor. Se as denominações que hoje usamos para categorizar as diferentes sexualidades e identidades de gênero, Apolo certamente seria bissexual. Ao contrário da fluidez da pansexualidade, um deus que oferece formas e limites ao mundo se encaixaria bem na definição em questão ― que delimita um gênero ou o outro. Apolo e Jacinto tiveram um romance sublime, porém trágico.

ÁRTEMIS. Caçadora divina, guia do astro lunar, aquela que detém o domínio das florestas virgens e jamais exploradas, protetora das mulheres e dos animais selvagens. Ao nascer, já adulta, Ártemis renunciou à companhia dos homens e ao casamento, ritual cívico-sagrado na tradição greco-latina. É associada ao arquétipo da Virgem, segundo o psicanalista Carl G. Jung. Sua renúncia ao ato sexual pode ser associada com os assexuais, também parte da comunidade LGBTQ+. Muitos, porém, questionam se a deusa não desfrutava da companhia amorosa das mulheres, o que faria dela homossexual, stricto sensu.

HERMAFRODITA. A noção de intersexual ― alguém que carrega as características biológicas dos dois sexos (macho e fêmea) ― possui até origem mitológica para a civilização grega. Hermafrodita era filho do mensageiro dos deuses, Hermes, e da deusa do amor, Afrodite. Filho da união do extremo feminino com o supremo masculino, já que Afrodite era, também, deusa da feminilidade, e Hermes era conhecido pelo seu grotesco falo, símbolo da virilidade masculina. A união dos dois gêneros em seu corpo tornou-se mais significativa quando Hermafrodita conheceu Salmácis, uma ninfa das águas doces. Segundo o mito, a ninfa desejou o belíssimo deus de forma fervorosa, mas ele não era recíproco em seus sentimentos. Rogando, após rejeitada, uma poderosa prece aos olímpicos, Salmácis atirou-se completamente nua ao rapaz, pedindo que se tornassem um só. Dali em diante, o filho de Afrodite e Hermes carregou, para sempre, mulher e homem num corpo só.

ZEUS. Sim, a figura de maior autoridade e poder da tradição greco-latina, tal como Apolo, era bissexual. O senhor da luz e dos céus, rei de todos os deuses, deus dos raios e das tempestades, certa vez, apaixonou-se por um jovem mortal chamado Ganímedes. Sua paixão foi tão avassaladora que o deus transformou-se em águia e sequestrou o mortal de seu lar, voando com ele até o Monte Olimpo. Lá, Ganímedes foi abençoado com a juventude eterna para passar o resto de seus dias servindo néctar e ambrosia para os olímpicos.

O sexo para os gregos ― principalmente os clássicos ― era associado culturalmente à penetração. Apesar de suas dicotomias machistas e falocêntricas, esses indivíduos não censuravam suas relações sexuais com base no gênero dos amantes. Não resta dúvidas que, sobre a multiplicidade dos desejos humanos e sua sexualidade, o sujeito grego tinha algo a ensinar ao Homem moderno. E nós, certamente, temos algo a aprender.

Imagem: O herói Aquiles lamenta a morte de seu amado amigo Pátroclo (1855), de Nikolaj Nikolaevič Ge. Wikicommons