É difícil construir gerações femininas repletas de amor e respeito próprios, uma vez que os mitos primordiais canonizados na civilização ocidental apresentam a mulher como a causa de todos os males. Pandora, dos antigos gregos, e Eva, da tradição bíblica, são separadas por quilômetros físicos e culturais, mas carregam em comum o estigma do “maldito fruto”. Será?
Segundo os mitos da Grécia Antiga, os primeiros homens a existirem no mundo eram imortais. Eles não conheciam a fome, nem a doença, nem o trabalho e tampouco a morte. Apesar de tanta glória, nenhum deles tinha lugar nos salões do Olimpo e, como não conheciam a arte do fogo, eram obrigados a passar as longas noites com frio e a comer suas caças cruas. Compadecido da situação da humanidade, o titã Prometeu decidiu roubar uma centelha das chamas dos deuses e levá-la até seus protegidos.
Esse ato tão determinante para os seres humanos causou cólera em Zeus, que castigou Prometeu acorrentando-o a um rochedo, fadado a ter o fígado devorado por uma ave de rapina pela eternidade. Para os Homens, o castigo veio em forma de presente: a primeira mulher, Pandora. Uma criatura abençoada com a arte, a beleza, a audácia e a curiosidade pelos Olimpianos. Com Pandora, veio um pythos “jarro”, em grego, que guardava todos os males do mundo.
Embora Pandora tenha sido estritamente advertida para não abrir o jarro adaptado em versões mais recentes como uma caixa sua curiosidade venceu no final das contas, concluindo, desta maneira, a vingança de Zeus sobre a humanidade. Quando o jarro foi aberto, os Homens passaram a conhecer a fome, a doença, o trabalho e a morte.
Parecido com a narrativa de Eva e a serpente, em que a primeira mulher do mundo prova de um fruto o qual era estritamente aconselhada a não comer, condenando, assim, a humanidade a viver fora do Paraíso, o mito de Pandora pode ser analisado com maior profundidade. O fogo de Prometeu, segundo muitos estudiosos helenistas, seria a “consciência”, a ideia de civilização. O Homem passa a assar sua comida, adquire conhecimento metalúrgico e ilumina as noites sombrias; mas como consequência, passa a compreender sua mortalidade, coisa que o diferencia dos demais animais.
Eva também mostra-se inerente no processo de individuação da humanidade. Quando ela e seu marido, o primeiro homem, Adão, provam do “fruto do conhecimento do bem e do mal”, ambos imediatamente percebem-se nus e buscam cobrir seus corpos. Eis como o Homem se vê distante dos animais, puramente instintuais, e amplia sua visão para maiores questões ao redor.
Adquirir consciência é processo doloroso, associado a uma morte, mas definitivamente essencial para construir civilizações. Apesar dos mitos das “primeiras mulheres” serem interpretados continuamente como “a vinda do Grande Mal”, talvez seja a hora de perceber como o feminino é psicologicamente essencial dentro de nós para fazer emergir a consciência das águas místicas do inconsciente, como emergiu Afrodite, bela e adulta, das ondas do mar de Chipre.
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