Cante sobre os ossos

Na antiga história de La Loba*, a personagem é uma mulher que canta sobre os ossos que recolhe do deserto, até que eles se forrem de pele, carnes e pelos. Ela canta com fé até o chão estremecer, até o bicho abrir os olhos e ganhar vida e, em algumas lendas, o lobo corre pela planície, vira mulher e sai em direção à vida!

Quando ouvi essa história pela primeira vez, ela me remeteu a tantas coisas. Umas mais intangíveis, como, por exemplo, as tantas vezes nas quais precisei cantar minha alma sobre os meus ossos nos desertos da psique e da vida. E outras mais concretas, como quando morei em Idaho e corria todo dia por um Cânion, sempre acompanhada de um cachorro que corria do outro lado da margem, lado a lado, no mesmo ritmo. Às vezes, eu parava para olhá-lo e nossos olhos se cruzavam, mas as águas nos separavam. Meses depois, descobri que, na verdade, se tratava de um lobo que tinha se perdido da alcateia.

Minha vontade de escrever sobre povos tradicionais e suas histórias nasceu aí, nesse lugar. Não sei se precisamente em Idaho, mas nesse espaço dentro de nós, fora do tempo, onde se encontram o bem e o mal, o tudo e o nada. E ali habita la que sabe, a mulher selvagem.

Podemos encontrá-la cada vez que alguém nos humilha, frustra, desqualifica, ameaça, destrói, mata, e ela está lá dentro cantando sobre os ossos…

Através de sonhos, ela canta sobre os seus, os meus, os nossos ossos de dor, de medo, de vergonha e nos faz, outra vez, correr com os lobos em um cânion, sem medo, achando que é apenas um cachorro.

Entre muitas idas e vindas, percebi que, quando habitamos uma pele ferida, temos a ilusão de que não podemos exercer esse dom de dar vida ao que foi morto, desmantelado. Às vezes, achamos que nossa alma não tem nada para dar, mesmo sabendo que é o esterco que aduba a terra. Mas, então, essa mulher selvagem original, que deve ser resgatada de debaixo da terra do nosso ser, do fundo das águas paradas dos nossos mares mortos, aparece cantando o som da sua vida…

E, por isso, eu canto sobre os ossos…

Sempre gostei das pessoas que tinham esqueletos nos armários, gente que tem cicatrizes (Ah, tem batalhas que não nos deixam sair ilesos…). Quando as encontro, presto atenção em que voz tem o som da sua alma e paro para ouvir essa voz mitológica de dentro de nós, daqueles que vieram antes e dos que virão depois, de tudo que sabemos por instinto e de tudo que aprendemos no silêncio de uma oração.

Quando o lobo e a mulher se encontram correndo em direção à vida, sua alma se tornou indestrutível e, nesse momento, você sabe que um dia olhará para trás e terá saudades de quem você foi no deserto.

Como diz um personagem do meu próximo livro: sejam selvagens, sejam livres!

*La Loba é uma história narrada pela autora Clarice Pikolas Esthees, no livro “Mulheres Que Correm com Lobos”.