Dessa vez vem com menos samba, mais pop, sempre generosa e, como ela mesma se define, “cada vez + misturada.”
“Ela Disse-me Assim”, “Loucura”, “Eu Te Quero Agora”, “Sem Dó”, “Melhor pra Você”, “Ouvi Dizer” e muitas outras pérolas você pode escutar no novo álbum da arrebatadora Mar’tnália.
Em bate papo delícia na varanda da sua casa, de cara para alguns cartões postais da cidade que ela ama e reverencia, Mart’nália contou pra Vênus como surgiu cada música e parceria em seu novo cd + misturado.
Após dois anos em turnê com o “Ao Vivo em Samba”, produzido pelo paizão Martinho da Vila, essa inquieta artista já estava de “saco cheio de ficar sacolejando, sambando e repetindo o mesmo roteiro”. Queria gravar um cd em estúdio; com músicas mais antigas e pops, e atender solicitações do seu público, que quer coisas diferentes.
E assim surgiu seu novo álbum, com bossa nova, música black, creole, samba funk, composições próprias, participações especiais incríveis, grandes regravações de suas memórias afetivas, com músicas das estrelas Gil, Caetano e Djavan, e do tempo das serestas cantadas pela sua mãe, animadas por sambas canções de Lupicínio Rodrigues, o grande poeta dos amores desfeitos e das dores de cotovelo, entre outros.
Então aproveite essa viagem, pois o cd está gostoso de ouvir. E “arte tem que caminhar”.
Vênus – Você já estava planejando este cd há muito tempo?
Mart’nália – Não. Não planejo nada muito. Foi rápido. Já tinha a ideia do + Misturado, já tava de saco cheio do outro. Queria cantar músicas completas, início, meio e fim, pois o outro era cheio de pot-pourris. Neste, eu queria mesmo era fazer um disco de estúdio, que fosse mais autoral, com gente nova, e queria menos regravações. Mas acabei fazendo várias.
Vênus – Como surgiram, foram feitas e escolhidas as músicas do seu novo álbum?
Mart’nália – Vambora…
A primeira música do cd é com meu pai. “Ninguém Conhece Ninguém” é um samba bem antigo, da década de 70. Achei legal ter samba, começar com esta música e fazer uma homenagem ao meu pai. O samba é nosso mesmo. Assumir o que a gente é, e tudo bem. Tinha que ter nessa minha mistura. E quem nunca foi do samba ainda vai ser do samba rasgado.
Vênus – Como você definiu a ordem das músicas?
Mart’nália – Eu vou pensando e depois faço uma votação entre quem está no estúdio, o João Thiré, técnico de gravação que participou de todo processo, eu e Marcinha, a produtora que também dirigiu junto comigo. É como a gente sente o disco, o que quer falar, pra não começar nem muito lá em cima e nem muito em baixo. Priorizando mesmo a música, o arranjo. Colocando um detalhezinho aqui, outro ali, sempre respeitando o arranjador”.
“Vem cá, Vem cá” quase caiu. Mas com uma modernizada no papel da mulher a letra cresceu e traz mais um arranjo envolvente e dançante.
Música do Zé Katimba, grande compositor da Imperatriz Leopoldinense. Era mais um samba tradicional carioca e a gente mudou com o arranjo do Arthur para chegar na Morna (A morna é o gênero musical que mais identifica o povo cabo-verdeano. Trata-se verdadeiramente de um símbolo nacional)e ter essa outra flexibilidade. Na letra original eu falava “sou a negra mais branca do mundo”, mas tranquei, não me sentia bem falando isso. Não tô a fim dessa afirmação, levantar essa bandeira. Aí eu tentava cantar e nunca saía, eu não sentia a música, quase que ela caiu. Mostrei pro meu pai e ele também achava um pouco machista. Pedi para ele terminar a música com o Zé, já que são parceiros. Ela é boa, eu gosto, dá pra chegar num lugar legal, mas o parceiro é seu. Mexer aqui é delicado. Mas ele não aceitou. Aí coloquei um entra e sai do trabalho, dei uma vida mais moderna e atual para a mulher e virou “a preta mais loura do mundo”. Antes ela só desejava o cara e por isso ele a queria, mas ela era meio idiota, não fazia nada e não conseguia resistir aos encantos e seduções dele. Mas Katimba me deixou bem a vontade para fazer o que quisesse. Depois da bênção, relaxei e ficou legal.
“Tomara” é minha com Mombaça. Ele já chegou com a música toda mastigada, com a visão e as mulheres dele e eu com as minhas. Tem uma assinatura. É bem carioca, é a essência dele, e junta comigo e fica bem a gente mesmo. Uma música para fazer o pessoal cantar, brincar. Contando uma história que pode ser de qualquer um, no dia a dia, de uma pessoa ativa, que vive no Rio, sai de noite, mas tem problemas e dane-se.”
A próxima é do cantor e compositor carioca Zé Ricardo. “Eu te quero agora”, traz a pegada Black, o baile Charme, a música pra dançar.
Eu vivi muito isso. Morei em Pilares, berço da música black carioca. Eu trago muito do Charme. É a essência carioca também. A princípio, eu queria pegar uma música dele e jogar na mão do Max de Castro, do soul de Sampa, música preta de lá, e já tinha trabalhado muito com ele, em anos anteriores. Tem um suingue diferente do Black daqui do Rio, mas não deu pra gente “coisar”, se juntar, ficamos só no falar. Como eu já tinha trabalhado com o Zé Ricardo em vários lances (cantei no disco e no show dele e ele comigo), ele me chamou para fazer o Rock in Rio – Palco Sunset (Homenagem à Cássia Eller) e foi muito bacana. Aí, começamos a firmar mais. Depois fui pra Portugal, no Palco Sunset e fiz com ele uma homenagem ao samba. Tava faltando essa pegada Black no cd. Gosto muito da banda dele, é boa demaixxx. Fui criada no subúrbio, ouvindo Michael Jackson, Steve Wonder, e hoje em dia não tem mais esse som. É muito Rio de Janeiro, Sandra de Sá, Cassiano, Arthur Maia, Claudio Zoli, groovezão mesmo, e o Zé vive muito isso, é o maior expoente no momento. Aí foi legal. Ele trouxe uma canção, não era bem o que desejava, aí ele cantou e gostei muito. Ele veio com a banda e tinha a pegada que eu queria, são músicos cariocas, não tem uma regência, uma direção de apenas uma pessoa. Ficou legal, tanto a música como o arranjo. No próximo, quero que o Zé chegue antes. Nesse cd, ele veio de uma história que não deu certo com o Max e acabou ficando bom pra caramba.”
“Morei em Pilares, berço da música black carioca. Eu trago muito do Charme. É a essência carioca também.”
Vênus – Como você funciona no dia a dia da elaboração e gravação do cd? É muito perfeccionista? Se prende a detalhes?
Mart’nália – Eu sou uma virginiana que aceita. Fico ouvindo, falo o que acho e muitas vezes acho uma merda. Como sei que virginiano é chato, deixo fluir, pois se ficar de cricrizisse o negócio não vai caminhar. Nós, virginianos, somos propensos a travas do perfeccionismo e o meu é no som, ouvir os detalhes. De resto, o que vier tá bom pra mim. Por exemplo, com o Zé Ricardo, quando ele fez o arranjo da primeira música, foi tudo lindo. Então vamos fazer outra. Como eu trouxe o artista, quero ver primeiro o que ele tem para me mostrar. Eu saio do estúdio, não gosto de ficar ouvindo aquelas repetições. A maioria dos virginianos gosta de ficar no estúdio, acompanhar tudo. Eu só reclamo por último. Mas recebo bem, porque de qualquer forma eu posso estar toda errada. Não é só a minha visão que vale. A minha carreira é mais feita de coisas erradas que eu faço, das tentativas, do que precisamente o correto. Também não ensaio muito. Pra que mais dez ensaios?! Tenho que ir pra estrada para aprender. Foi assim que aprendi com meu pai. Vou pra casa fazer dever de casa e estudo. Na estrada é pra mudar, adaptar e ver o que funciona ao vivo. Não é igual ao cd. A arte tem que caminhar. Não dá para ficar empacado no que eu quero. Se eu quero misturar, vamos misturar.
“Se vc disser adeus” foi uma música que ganhei do Geraldo Azevedo, quando estávamos juntos em um festival em Angola. Na ocasião, eu completava 50 anos. Tenho um afeto familiar com o Geraldinho. Foi emocionante gravar com ele. Recebi essa canção no meu aniversário e fiz uma festa danada, derrubei tudo na portaria, bebemos até de manhã cedo. Estávamos em Angola quando ele me mostrou a música. Segundo ele, é do tempo do Canecão (risos). Eu já tinha pedido uma música pra ele há muuuito tempo atrás. Gravava e esquecia de pegar. Eu queria essa mistura com o Nordeste. Gosto muito da música pernambucana, tenho muitos amigos lá, vou sempre, é um ambiente meu. Recife é muito misturado, música riquíssima, eles aceitam sonoramente muita coisa. Fui criada dessa forma, com Lenines da vida, Elba Ramalho, é a música que tem a ver com meu ambiente. Não sabia quando ia gravar. Foi a primeira canção que entrou no cd. Falei com o Arthur (Maia), que estava envolvido na pré produção, e já dei para ele ir trabalhando. As músicas que gosto mesmo, entrego pra ele já ir pensando e quando gravar já estão mais ou menos prontas, não precisa mudar muito. Não era um samba, era uma canção, e eu não queria perder a assinatura dele. O Arthur é um cara que toca com todo mundo, aí, já imaginou um tom que desse para o Geraldinho, caso ele quisesse cantar. Não é exatamente o meu, mas ficou confortável para os dois cantarem. A música, parece que você já conhece, bem assinada por ele e é maravilhoooosa! Geraldinho aceitou ir lá e cantar comigo e poxa… que ensinamento. Referência de uma vida toda pra mim. Ele foi tão disposto, quando vi já estava lá. Presentão! Chamei o Kiko Horta pra fazer o acordeon e puxar mais pro nordeste. E na hora foi bom pra caramba. Assim começou este cd… em Angola, com a música de um nordestino e a linguagem bem carioca”.
“Ouvir Dizer” é samba de terreiro, mas sem formalidades. Nada de orixás e divindades. Aqui Mart’nália conversou com o povo de rua e colocou o atabaque para todo mundo levantar e dançar.
Eu queria uma pegada de macumba familiar, não queria ficar falando em orixás… Todo mundo sabe que sou misturada até nisso: minha religião é afrobrasileira, católica com macumbeiro. Queria uma forma mais descontraída, aí todo mundo mandando as coisas muito certinhas, sérias, não aguento essa seriedade toda. Eu sou Oxóssi, e com ele não tem esse negócio de ficar preso, é o orixá mais livre. Recebi várias coisas maravilhosas, mas não com o estilo que eu queria agora, mais relaxada. Eu esperava uma samba de terreiro, que juntasse um pouquinho com a Bahia e tivesse o atabaque. Não me interessava o que estava falando, mas queria o atabaque. É um partido alto, um samba de roda. Imaginava algo mais melodioso, até porque, com atabaque, todo mundo levanta e samba, é contagiante. Tem essa presença do tambor, e precisava disso pra misturar mesmo. Achei essa música muito interessante, com a Teresa Cristina e o Mosquito, porque são dois cariocas, ela vascaína sofredora que nem eu e ele um cara que gosto muito, uma voz incrível, sem presepada, é bem o que eu conheço do partido alto carioca, que chega, tem vozeirão, canta e dá o seu recado sem mais mais. É um jovem versejador, tem a essência do pessoal do Cacique (de Ramos), transita por vários sambas. Não tem a ver com escola de samba. Ela me surpreendeu, toda quietinha, e tem essa coisa do falar carioca do Partido Alto. Aí, eu disse: “Põe essa música aí. Eu quero. É uma linguagem legal de término, me deixa, sai chulé… Sai pra lá assombração, sai pra lá.”
Vênus – “Libertar” é sua com Zélia Duncan, Arthur Maia e Ronaldo Barcellos. Você diz que não gosta de compor, mas suas músicas são muito boas. Como foi essa composição?
Mart’nália – Obrigada (ela agradece timidamente). Essa música é antiga, estava guardada desde quando o Djavan me dirigiu no álbum “Não Tente Compreender”, de 2011. Ele não queria repetição de compositores. Cada patrão é de um jeito, né? E já tinha uma música da Zélia Duncan e do Arthur, essa então ficou guardada pra outro albúm. A melodia do Barcellos estava pronta, aí fui fazendo a letra com calma e, como não precisei usar, eu parei de pensar nela. Mas já tinha um refrão, e agora foi dada uma renovada. Queria trazer novamente essa parceria com a Zélia, ela e Arthur já estavam produzindo, e só terminei mesmo quando fui gravar a voz. E sabia que, do jeito que fizessem, ficaria legal. Terminei do meu jeito, fui botando as palavras, enfiei minha Visconde de Mauá. Friozinho com lareira, banho de cachoeira… Ficou gostosa.
Estrela de uma estrela. Assim é a música do Gil. Como escolher uma música de um repertório tão vasto e lindo? O álbum foi o ponto de partida e o “Quanta” foi o eleito.
Eu escolhi. Ia pedir uma música nova, mas não estava a fim de perturbar com isso e acho mesmo que as músicas do Gil são todas feitas pra mim (risos). Ele é o The Best dessa coisa da mistura, e a dele é muito muito foda, né? Desde a Tropicália. E sempre inovou. É o meu tiozão. Queria ele, mas não queria uma música batida. O “Quanta” é um dos discos dele que mais gosto, são “doix dixcox” bem misturados. Ele sempre é mais moderno que todo mundo, e nesse álbum ele fala de Shiva, e de todos os orixás, da forma “gilbertogilneana”. Esse jeito que só ele fala, só não entende quem não quer, quem tiver muita má vontade (risos). Ele explica minuciosamente tudo, mastiga tudo pra você entender, te dá de mão beijada. Já tinha gravado com ele algumas coisas, até quando era vocalista. Ele permeia muito a minha vida dentro e fora do trabalho. Essa música vem com o arranjo do Zé Ricardo, com a pegada Black. Na primeira passada já tava ótima. E, também, como gravar uma música de um cara desses?!… Eu não gosto de mudar a música dos outros. Ele já fez tudo! Aí vem alguém e muda a melodia! A pessoa tem que ser multada!!! É um abuso. Pelo menos uma vez, preservo a forma que o artista fez. Lá na frente, depois de cantar várias vezes até posso mudar alguma coisa. Tem muita música assim, principalmente no samba e no jazz.
Vênus – Desta vez, o cd traz muitas pegadas jazzísticas. É a sua praia também?
Mart’nália – É a minha praia! Eu sou mais musicista e compositora do que cantora, e adoro música instrumental. É nessa parte que gosto de estar no estúdio, vendo o produtor construir. Nesse disco não tem O arranjo, mas tem a contribuição de cada artista músico que foi lá fazer. E isso permitia mais contribuição da arte do fluir. O samba tem bastante disso, de vc cantar outra melodia, dividir da forma que você quiser. O jazz é bem isso aí.
Vênus – O que a fez resgatar “Tempo de Estio”, da década de 80, do Caetano, para seu novo disco?
Mar’tnália – “Tempo de Estio” é uma reverência ao Rio e à liberdade. É de uma época em que se ousava mais. Música carioca feita por baiano. Eu sonhei que estava ouvindo essas músicas lá pra trás, que permitiam outras coisas, podia falar sem censura. Lembrei do Marcelo, um cara que era meio andrógino. Lembro dele em programas de auditório, tinha um cabelo preto bem encaracolado, com o peito e a barriga de fora, cheio de lápis nos olhos, metais, era uma liberdade. Chegava cantando: “Quero comer,/ quero mamar,/ quero suas meninas!” E podia… O arranjo era ótimo. Era uma época muito feliz, você podia tudo na década de 80. Eu tava na verdade esperando uma música nova do Caetano, mas também não quis perturbar, eu sei como a vida é corrida, muita gente pedindo, aí pensei, pra que eu quero uma coisa nova?! Escolhi uma música carioca, todo mundo conhece, ela moveu uns três verões seguidos. O arranjo do Caetano, não sei se era menos ou mais feliz, mas era outra pegada. Chamei o Dadi para fazer pra mim, alguém que já fala a língua do Caetano, pra ser mais rápido. Ele tem essa coisa do músico que é artista e é baixista, minha referência de instrumento que eu me guio pra quase tudo. Ele fez o arranjo com guitarra meio tímida, aí pedi para ele caprichar, porque ela tá mandando na música. Completei com uma brincadeira com outras meninas minhas, mostrei pro Caetano, e ele achou ótimo, adorou! Virei pra ele e pedi para esquecer a música nova, deixa pra um outro dia, já foi”.
Vênus – Há algum novo artista lançado no seu álbum?
Mart’nália – “Melhor pra Você” lança artistas novos. Juventude sensível que convive com a arte de todas as formas. Tonton (Tom Karabachian), é filho do Moska, só não vi na barriga, mas depois desde pequeninho, fazia lição com ele, sempre foi um moleque meio filhote, que me perguntava uma coisa ou outra desde novo. A gente tava lá na produtora, “no clubinho”, e ele pediu o violão emprestado, me mostrou a música e eu gostei! Não entrou o Moska, mas entrou o filho do Moska! Tinha pedido pra família, pros sobrinhos, outros coleguinhas, pra garotada, pra mandarem músicas sem ser samba, mas ficaram com medo de mandar pop. Zé Ricardo também fez o arranjo, junto com Maurício Piassarollo, e a produção musical. Manteve sua pegada Black, tudo a ver com Tontom e o com o Cris Sauma, meninos compositores novos e antenados.
Vênus – “Linha do Equador” é uma regravação de dois astros da MPB: Caetano e Djavan. Mais um belo ingrediente na sua inspirada mistura?
Mart’nália – “Luz das estrelas/ laço do infinito/ gosto tanto dela assim” Nessa coisa de procurar música do Caetano, esbarrei nessa. Aí pensei: vou deixar essa aqui que já resolvo um Djavan, porque num disco mais misturado não pode deixar de ter. E o Dija é o jazz do Brasil, ele traz essa assinatura e, com essa música, eu resolvia dois patrões, né? Dadi já tinha feito o arranjo de “Tempo de Estio”, e vou ter que colocar dois Caetanos, mas e daí? O disco é meu e gostei muito.
“Sem Dó”, um apelo cheio de malandragem, com jeitinho de Bossa Nova, chique, dá vontade de dançar juntinho. Aí é Beto Landau e Rodrigo Lampreia, como eles são da praia, tem uma pegada Bossa Nova e, respeitando meus compositores, decidi fazer da forma que eles fizeram e, como tava faltando esse ingrediente, já resolvi essa mistura. Tem um tamborim na levadinha, mas bem sequinho, bem coeso, com todo mundo se segurando para não virar festa, porque fala de um apelo, mas é de forma engraçada, meio malandragem. A leitura do arranjo do Zé Ricardo ficou bem bacana. Ele fez uma pegada samba funk, deixando as nuances de um violãozinho, bateria sequinha, fazendo só o aro pra lembrar o da Bossa Nova, trazer essas coisas de volta. Ficou gostosa, leve: “No porta- retrato,/ marcas de um tempo/ que ficou pra trás”. “Si tu pars”, a graça francesa. Nessa mistura toda, prefiro o francês ao inglês, e eu queria fazer uma brincadeira como já tinha feito antes com “Don´t worry be happy”. Marcinha, minha produtora, sempre falando para eu gravar em francês, já que gosto tanto e tenho um sotaque bem bom. Estudei na Aliança Francesa quando era pequena, e todos os franceses falam que a minha pronúncia é muito boa. De alguma forma, meu paizão descobriu que temos uma ascendência talvez suíça, que vem de Duas Barras, interior do Rio, onde meu pai nasceu, e lá é terra de suíços e alemães e meu avô era colono lá e tinha uma certa regalia apesar de ser preto, pois devia ser filho de alguém. E meu pai, com esses estudos que ele adora, descobriu que temos uma origem francesa”.
Vênus – E por que a escolha dessa música?
Mart’nália – Porque gosto do Lokua Kanza, gosto do Creole, que acho bacana e já tinha feito uma música com o Moska em creole, a “Res’t La Maloya”, que foi uma África francesa, que gostei muito de conhecer pela mistura de gente e culturas. Fiquei uns 30 dias dando um workshop de percussão, formamos uma escola de samba com vários profissionais de várias escolas aqui do Rio. Gosto muito dos franceses. E eles, do Rio. Não incomodam a gente e têm hábitos bem parecidos com os nossos, curtem a natureza, o sol, a montanha. Se eu fosse sair da praia, eu moraria em Paris, certamente. Aí, procurando uma canção em francês, lembrei do Lokua Kanza, que já conhecia de um cd da Gal. Ele fez os arranjos vocais deste cd e eu, como vocalista, adoro vocais, aí me apaixonei pela sonoridade desse cara. Ele é amigo do Mombaça. A Marcinha começou a procurá-lo, não encontrei ele pra gravar. Dependia de gravadora. Hoje tá tudo muito ruim de dinheiro, e não gosto de gastar energia à toa, quando vou fazer é pra ser logo. Aí liguei pra ele, conversamos, falei que ia gravar a música. Aí decorei, estudei, me preocupei com as entonações dele, gravei e fui viajar. Ele acabou vindo pro Brasil, mas eu estava no Nordeste. Ele pegou minha gravação e cantou em cima. E fez outras vozes. Chamei o Arthur Maia para fazer o arranjo, pela sua diversidade. Ele me levou pra fazer meu primeiro show em Moçambique, tem a maior influência nessa zona africana. Parece até que estamos cantando juntos, ficou bem bacana.
Vênus – Você e Arthur Maia estão juntos há quanto tempo?
Mart’nália – Desde que ele tinha 16, 18 anos, e tocava com meu pai. O Arthur chegou muito cedo e somos muito parecidos. Ele era o meu acesso ao Jazz. Ele tocava nos Festivais de Jazz do Rio, e me levava. Eu não tinha grana, tava lá em Vila Isabel, e ele me apresentou. Eu colava nele, levava o baixo pra ele. E depois dos shows íamos para os pianos-bares aonde iam todos os músicos dos festivais. Eu era rata de estúdio com ele, porque o contrabaixo é o meu tamborim.
Vênus – O grande poeta dos amores desfeitos e das dores de cotovelo, Lupicínio Rodrigues, entrou na mistura por quais razões? “Ela disse-me assim – Loucura” foi escolhida para relembrar as serestas que sua mãe cantava em casa e para agradar seu público de idosos fiéis?
Mart’nália – Lupicínio é seresta. Minha mãe era cantora e fazia lá no Lins, onde morávamos, queijos e violões: era pros meus amigos do colégio, que tocavam, e ela ficava lá, ouvindo e cantando. Ouço desde nova, e a música que eu gosto mais no samba é o Samba Canção, a Seresta. Lupicínio é a boemia de Vila Isabel. Sempre cantei nos bares, na noite com meus amigos, tomando cerveja e tocando violão na rua… aí pensei: tá faltando. É a faixa etária do meu pessoal, minhas coroinhas e coroas que gostam de mim, do meu canto – minha van do Teatro Rival. Eu sou muito mais “popular” do que qualquer outra coisa. Não podia faltar nessa mistura, pra minha galerinha cantar junto. E como escolher? Qualquer pessoa que queira gravar Samba Canção desiste, porque os melhores a Bethânia gravou todos mesmo, não tem nenhum maravilhoso que ela não tenha gravado. Ela foi a primeira pessoa que gravou Noel Rosa no Brasil, fez um disco só de músicas dele. E ela não era nem conhecida. Aí fiz uma graça pra ela. Pensei logo no Claudio Jorge, meu amigão, que toca com meu pai e tem um violão que adoro. Fui criada ouvindo. E a gente tem essa boemia, esse violão… Violão é violão, é serenata, seresta. Cláudio Jorge é o violão mais jazz do samba, e ele fez o arranjo. Lupicínio é o que realmente gosto mais dentro do Samba Canção. A famosa música de corno. É muita melodia e cordas, que eu adoro! Antigamente tinha guerra de serestas na minha casa. O Baden, muito amigo do meu pai, tava sempre lá. Eu venho de uma geração muito privilegiada. Eles já fizeram tudo, num outro ritmo, outra veracidade. Eu ia pra casa do Candeia com meu pai, Dona Ivone era na esquina, tudo ali no meu entorno. Paulinho da Viola e Eliana Pitman são padrinhos do Tunico, meu irmão, pensa nisso!
Eu nasci assim: toda misturada.
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Fotos: Marta Azevedo
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