Os mitos gregos sempre têm algo a nos ensinar sobre o amor e o desejo. Por poucas vezes, contudo, esses exemplos nos remetem ao casal divino Zeus e Hera, que sempre nos revelam as faces sombrias de um longo casamento: traições, abuso de poder e conflito de interesses… Parece que a união matrimonial cai no abismo da tirania e que nada mais pode-se esperar dela. Que tal um mito que ofereça um novo ponto de vista?

Estamos nos montes de Ilion, onde a guerra entre gregos e troianos estava acirrada. Os deuses do Olimpo, divididos. Para evitar um combate sangrento em sua sagrada casa, Zeus ordenou que ninguém poderia interferir nas brigas do mundo humano. Sua palavra era a Lei!

Que tal um mito que ofereça um novo ponto de vista?

 

Hera, deusa do poder e da soberania, queria prestar auxílio aos guerreiros gregos, seus favoritos. Então, ardilosa, forjou um plano para distrair o rei do Olimpo.

A deusa se prepara: enche todo o corpo com ambrosia e óleos perfumados; arruma os próprios cabelos em tranças brilhantes que caem pela testa; cobre-se com vestes douradas, tecidas pelas mãos hábeis da deusa Atena… e o toque final: amarra sobre a cintura uma fita que pertence à Afrodite.

É uma fita mágica, bordada com desejo, ternura, encanto e sedução. Torna qualquer um que a usa irresistível a qualquer criatura! Vestida “para a guerra”, Hera encontra seu marido nos salões do Olimpo e pede que ele a acompanhe até o monte Ida, próximo da cidade de Tróia.

Os mitos gregos sempre têm algo a nos ensinar sobre o amor e o desejo

 

Segundo o mitólogo Marcel Detienne, o ponto mais alto do amor para o grego é o impacto do olhar sobre o objeto amado (e jamais visto!). Zeus olha para sua esposa, mas a vê como se fosse a primeira vez! Diante daquele rapto subjetivo, do roubo de si mesmo pelo desejo voraz, ele aceitaria qualquer coisa que Hera lhe pedisse.

Os deuses são eternos, mas suas paixões são tão efêmeras quanto uma breve vida mortal. Diante da esposa perfumada, Zeus afirma que jamais sentira tanto desejo em toda a sua existência, quanto sentia por ela naquele momento. Nem quando raptou Europa, em forma de touro; ou quando deitou-se com Sêmele, na relva tebana; nem mesmo pela própria Hera, que tantas vezes dividiu seu leito.

O ponto mais alto do amor para o grego é o impacto do olhar sobre o objeto amado (e jamais visto!)

 

Apaixonado, como se fosse a primeiríssima vez em sua eterna existência, Zeus amou Hera no monte Ida. Sorrateiramente, os outros deuses foram auxiliar os guerreiros no campo de batalha, enquanto o soberano do Olimpo esquecia-se de tudo ao redor: da guerra troiana e das amantes humanas. Foi enganado da maneira mais doce, mais terna, mais deliciosa de todas.

Zeus olha para sua esposa, mas a vê como se fosse a primeira vez!

 

Zeus e Hera passam longe de ser um exemplo de relação conjugal saudável, mas há o que aprender com eles. Como as criaturas imortais e imbatíveis que eram, por muitas vezes caíram nas garras do orgulho e trocaram brigas homéricas (literalmente!). Muito sangue foi derramado em seus conflitos. No entanto, se quisermos extrair o que há de simbólico no mito, veremos um casamento de milênios que nunca se deixou esfriar. Com as chamas da paixão e do poder acesas, Zeus e Hera questionam, desafiam, desejam e, sobretudo, amam um ao outro.

TEXTO Morgana Leandro

FOTOGRAFIA  Louis Amal