Tenho pensado muito sobre vulnerabilidade, e como esta, que deveria nos humanizar, tem nos desumanizado. É a vulnerabilidade que nos torna mortais e diferentes de Deus. Sabemos que não tem nenhum dinheiro ou tecnologia no mundo, que possa nos colocar acima da morte, das mágoas de um coração partido, da imprevisibilidade da vida…

2020 é o ano que nos colocou de cara para nossa vulnerabilidade, mesmo entre as pessoas que tinham recursos para se trancar dentro de casa, nem todas escaparam; o vírus deu um jeito de mostrar que somos destrutíveis, através das compras que chegavam, do elevador, ou de outras mil formas que ainda desconhecemos.

Acho que o que realmente controlamos, é como vamos viver o nosso tempo. Quando nos agarramos a vida a todo custo, perdemos a alma, os afetos, nada mais importa, só nossa vida que começa a se esvaziar de significado para que sejamos invulneráveis, como se isso fosse possível.

Uma das cenas que me marcou esse ano foi um menino que tentou pular a janela de um hospital para se despedir do corpo da mãe. Quem dá o direito a um médico de impedir uma despedida? Quem garante que o filho não vai sair dali e ser atropelado, se matar de depressão, ou morrer de COVID? Proteger a vida a todo custo como se isso pudesse nos dar uma dose extra de invulnerabilidade, nos faz brincar de deuses e isso nos torna menos humanos e menos vivos.

É humano temer, proteger-se, usar tudo que está ao nosso alcance, seja vacina, distanciamento, máscaras, remédios…. Porém, como cada uma vai viver com esses recursos, define quem somos e se ainda queremos ter alma, ou só sobreviver.

O ano vai chegando ao fim, mas o horizonte ainda não acena com um novo começo, já sabemos que será uma estreia sem réveillon e carnaval. Mas, quem desfilou na avenida com estandarte de ouro foi a solidariedade e a compaixão, foram muitas as cenas de pessoas da área médica se arriscando para salvar vidas; gente comum distribuindo comida para mendigos no auge do lockdown, só para citar alguns exemplos. 

Todavia, na passarela da vida, também a morte desfila gritando “E daí? ” E depois ainda faz exposição das roupas que usou na avenida. É um universo de dualidades, onde as diversas forças se expressam todo dia. A vida à frente seguirá…

Nesses dias, tive um sonho no qual eu precisava fugir, tinha um papel na minha mão, no qual eu só conseguia ler uma coisa, dizia: foque no herói. O herói é aquele que joga dados com a morte, sempre. É aquele que abre mão da sua proteção para se arriscar pelo outro; para enfrentar o desconhecido; para lutar contra forças maiores que ele. Achei muito propício a esses tempos, quando todos nós temos que lutar contra uma força para a qual ainda não temos recursos, e enfrentar um novo normal, que ainda não conhecemos.

É um universo de dualidades, onde as diversas forças se expressam todo dia. 

Não escrevo para dizer como cada um deve viver, mas para lembrar que em nossos tempos cada vez mais extinta está ficando a alma. Precisamos sacudir o pó de todos os lugares pelos quais andamos nos últimos anos, ou para alguns, como eu, o pó da sala da casa de 2020, e sentar com a alma, como um peregrino que chega a um lugar sagrado, e perguntar-lhe :  como está você, ainda me conhece? Como vamos viver esse tempo?

Cabe a cada um descobrir como não viver a vida refém das forças da morte e não chegar à morte sem ter dançado com as forças da vida.