Meu amor.

Ainda há poucos instantes (dez instantes, dez minutos, que tanto gastei num desolador desde a nossa Torre de Marfim), eu sentia o rumor do teu coração junto ao meu, sem que nada os separasse senão uma pouca de argila mortal, em ti tão bela, em mim tão rude – e já estou tentando reconfigurar ansiosamente, por meio deste papel inerte, esse inefável estar contigo que é hoje todo o fim da minha vida, a minha suprema e única vida. É que , longe da tua presença, cesso de viver, as coisas para mim cessam de ser – e fico como um morto jazendo no meio de um mundo morto, Apenas, pois, me finda esse perfeito e curto momento de vida que me dás, só com pousar junto de mim e murmurar o meu nome – recomeço a aspirar desesperadamente para ti, como uma ressurreição! Antes de te amar, antes de receber das mãos de meu deus a minha Eva – que era eu, na verdade? Uma sombra flutuando entre sombras. Mas tu vieste, doce adorada, para me fazer sentir a minha realidade, e me permitir que eu bradasse também triunfalmente o meu – “Amo, logo existo!” E não foi só a minha realidade que me desvendaste – mas ainda a realidade de todo este universo, que me envolvia como um ininteligível e cinzento montão de aparências.

Quantas vezes, ante aquela sempre admirada e toda perfeita Vênus de Milo, pensei que, se debaixo da sua testa de Deusa, pudessem tumultuar os cuidados humanos; se os seus olhos soberanos e mudos se soubessem toldar de lágrimas; se os seus lábios, só talhados para o mel e para os beijos, consentissem em tremer no murmúrio de uma prece submissa; se sob esses seios, que foram o apetite sublime dos Deuses e Heróis, um dia palpitasse o amor e com ele a Bondade; se o seu mármore sofresse, e pelo sofrimento se espiritualizasse, juntando ao esplendor da Harmonia a graça da Fragilidade; se ela fosse do nosso tempo e sentisse os nossos males, e permanecendo Deusa do Prazer se tornasse Senhora da Dor – então não estaria colocada num museu, mas consagrada num santuário, porque os homens, ao reconhecer nela a aliança sempre almejada e sempre frustrada do Real e do Ideal, decerto a teriam aclamado in aeternum, como a definitiva Divindade. Mas quê! A pobre Vênus só oferecia a serena magnificência da carne. De todo lhe faltava a chama que arde na lama e a consome. E a criatura incomparável do meu cismar, a Vênus Espiritual, Citeréia e Dolorosa, não existia, nunca existiria!… E quando eu assim pensava, eis que tu surges, e eu te compreendo! Eras a encarnação do meu sonho, ou antes de um sonho que deve ser universal – mas só eu te descobri, ou, tão feliz fui, que só por mim quiseste ser descoberta! Vê, pois, se jamais te deixarei escapar dos meus braços! Por isso mesmo és a minha Divindade – para sempre e irremediavelmente estás presa dentro da minha adoração.

E a vida contigo, e por ti, é tão inexprimivelmente bela! É a vida de um deus. Melhor talvez: – se eu fosse esse pagão que tu afirmas que sou, mas um pagão do Lácio, pastor de gados, crente ainda em Júpiter e Apolo, a cada instante temeria que um desses deuses invejosos te raptasse, te elevasse ao Olimpo para completar a sua ventura divina. Assim não receio – toda minha te sei para todo o sempre, olho o mundo em torno de nós como um paraíso para nós criado, e durmo seguro sobre o teu peito na plenitude da glória, oh minha três vezes bendita, Rainha da minha graça. Não penses que estou compondo cânticos em teu louvor. É em plena simplicidade que deixo escapar o que me está borbulhando na alma… Ao contrário! Toda a Poesia de todas as idades, na sua gracilidade ou na sua majestade, seria impotente para exprimir o meu êxtase. Balbucio, como posso, a minha infinita oração. E nesta desoladora insuficiência do verbo humano, é como o mais inculto e o mais iletrado que ajoelho ante ti, e levanto as mãos, e te asseguro a única verdade, melhor que todas as verdades – que te amo, e te amo, e te amo, e te amo!…

Fradique


José Maria Eça de Queiroz foi um importante romancista português do século XIX. Nasceu em 25 de novembro, de 1845, na cidade portuguesa de Póvoa de Varzim.
Aos 16 anos de idade, foi estudar Direito na cidade de Coimbra. Seus primeiros trabalhos como escritor apareceram no Jornal Gazeta de Portugal. Trabalhou como administrador municipal no município de Leiria. Trabalhou também como cônsul de Portugal na Inglaterra. Esta época foi uma das mais produtivas de sua carreira.
Foi discípulo do escritor francês Gustave Flaubert, de quem recebeu grande influência literária. Eça de Queiroz foi um dos pioneiros da literatura realista em Portugal. 
Abordou, em suas obras, diversos temas. Porém, podemos observar algumas características comuns em seus romances, como, por exemplo, abordagem de temas cotidianos, descrição de locais e comportamento de pessoas, pessimismo, ironia e humor.
Eça de Queiroz morreu na cidade de Paris em 1900. Suas obras foram traduzidas em várias línguas. É considerado até os dias de hoje como sendo um dos principais representantes do realismo português.
Principais obras de Eça de Queiroz:
A Cidade e as Serras, A Ilustre Casa de Ramires, A Relíquia, A Tragédia da Rua das Flores, As Farpas, Contos e Prosas Bárbaras, O Crime do Padre Amaro, O Mandarim (conto), O Mistério da Estrada de Sintra, O Primo Basílio, Os Maias, Uma Campanha Alegre, Últimas páginas.

Foto: Clark Young

Através da figura de Fradique Mendes, um notável intelectual, Eça de Queirós dá voz às insatisfações da nação portuguesa em meio a crise que assolava o país no final do século XIX, em Correspondências de Fradique Mendes.

As cartas direcionadas à Clara são típicas cartas românticas. Estas cartas surgem como um contraponto às demais. Nas outras, Fradique é uma personagem intelectual e distante, mas nestas direcionadas à Clara ele se dobra perante a moça e fala a ela com um sentimento amoroso exagerado. Porém, Fradique não tem intenção de se unir a moça, mas sim apenas viver o seu amor como um objeto de adoração. Mais do que a Clara, Fradique passa a impressão de estar amando.