Foto Gabriel Matula

Despir um corpo a primeira vez é um acontecimento entre dois deuses. Não se pode profanar o instante. E os amantes devem manter o ritmo dos altares.
Porque, embora nesses rituais haja sempre panos e trajes para agradar o Olimpo,
é para a nudez total que o céu nos quer arrebatar.

As mãos têm que ter compasso certo. Um andante ou largo de Bach nos gestos, compondo a alegria dos homens e mulheres. As mãos, sobretudo, não podem se apressar. Com os olhos têm que aprender e, com a ponta dos dedos, contemplar os acordes que irão surgindo quando, peça por peça, o corpo for se desvestindo ao pé do altar.

Antes de se tocar com as mãos e lábios, na verdade, já se tocou o corpo alheio com um distraído olhar sempre envolvente. E ninguém toca um corpo impunemente. Despir um corpo a primeira vez não pode ser coisa de poeta desatento, colhendo futilmente a flor oferta num abundante canteiro de poesia. Nem pode ser coisa de um puro microscopista, que olha as coisas sabidamente. Se tem que ser de sábio o olhar, que seja do botânico, porque esse sabe aflorar em cada espécie o que cada espécie tem de mais secreto ou distante, o que cada espécie sabe dar.

Despir um corpo a primeira vez é conhecer, pela primeira vez, uma cidade. E os corpos das cidades têm portas para abrir, jardins de pousar, torres e altitudes que excitam a visitação. Algumas cidades sitiadas caem ao som de trombetas, outras se entregam porque não mais suportam a sede e fome de amar. As cidades têm limites e resistência. E, como o corpo, querem alguém que as habite com intimidade solar.

Gêngis Khan, Átila ou qualquer conquistador vulgar tem com as cidades e corpos, uma estranha relação. O objetivo é a devassa e a dominação. Conquistada a cidade, a ordem é marchar.

Por isto, cuidado para não se acercar de outro apenas com esse olhar guerreiro ou com esse olhar tolo de turista. O turista, embora procure sabores típicos, é um voyeurista, que está preso em algum porto, que não se permite num outro corpo inteiramente desembarcar.

Quando os corpos se tocam, por acaso, como se estivessem indo em direções diferentes, o que ocorre é desperdício. Não se pode tocar um corpo impunemente. E para se tocar um corpo completa e profundamente, num dado instante, os corpos têm que se convergir. E convergir com uma luz diferente. A descoberta do outro é isso, é convergência.

Despir um corpo a primeira vez é como despir um presente. Por isto não se pode desembrulhá-lo assim, às pressas, embora a gula nos precipite afoitos sobre a pele ofertada.

Não se pode com mãos infantis descompassadas, ir rasgando invólucros, arrebentando cordões com gula que as crianças só têm nas confeitarias antes da indigestão.

Despir um corpo a primeira vez, para usar uma imagem conhecida, é mais que ir a primeira vez à Europa. Pode ser, ao contrário, desembarcar pela primeira vez na América sobre a nudez do desconhecido. É descobrir na pele alheia, mais que a pele dele, a nossa pele índia. E volto àquela imagem: despir um corpo a primeira vez é tão marcante quanto a vez primeira que um mineiro viu o mar.

Um corpo é surpresa sempre. E o que se vê nas praias, nessa pública ostentação, nesse exercício coletivo de nudez total negaceada, em nada tira a eufórica contenção do ato, quando os dedos vão desatando botões e beijos, e rompendo as presilhas das carícias. Despir um corpo a primeira vez não é coisa para amador. Só se amador da arte de amar. Porque o corpo do outro não pode ter a sensação de perda, mas a certeza de que algo nele se somou, que ele é um objeto luminoso que a outros deve iluminar.

Um corpo a primeira vez, no entanto, é frágil e pode trincar em alguma parte. E os menos resistentes se partem, quando aquele que os toca, os toca apenas com a cobiça e nunca com a generosa mansidão de quem veio pela primeira vez, e sempre, para amar.


Affonso Romano de Sant’Anna: Nas décadas de 1950 e 1960 participou de movimentos de vanguarda poética. Em 1961 diplomou-se em Letras Neolatinas, na então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da UMG, atual Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais.
Em 1965 lecionou na Califórnia (Universidade de Los Angeles – UCLA), e em 1968 participou do Programa Internacional de Escritores da Universidade de Iowa, que agrupou 40 escritores de todo o mundo.
Em 1969 doutorou-se pela Universidade Federal de Minas Gerais e, um ano depois, montou um curso de pós-graduação em literatura brasileira na PUC do Rio de Janeiro. Foi Diretor do Departamento de Letras e Artes da PUC-RJ, de 1973 a 1976, realizando então a “Expoesia”, série de encontros nacionais de literatura.
Ministrou cursos na Alemanha (Universidade de Colônia), Estados Unidos (Universidade do Texas, UCLA), Dinamarca (Universidade de Aarhus), Portugal (Universidade Nova) e França (Universidade de Aix-en-Provence).
Sua tese de doutorado abordou uma análise da poética de Carlos Drummond de Andrade, com o título Drummond, um gauche no tempo, em que faz uma análise do conceito de gauche ao longo de sua obra literária.
Durante os anos de 1990-1996 foi presidente da Fundação Biblioteca Nacional, onde desenvolveu grandes ações de incentivo à leitura, como o Sistema Nacional de Bibliotecas.
Foi cronista no Jornal do Brasil (1984-1988) e do jornal O Globo até 2005. Atualmente escreve para os jornais Estado de Minas e Correio Brasiliense. É casado com a também escritora Marina Colasanti.