Amor verdadeiro. É normal,
é sério, é prático?
O que ganha o mundo com a união de duas pessoas
que passam a existir num mundo só delas?

Postas num mesmo pedestal sem qualquer razão,
retiradas ao acaso de entre milhões, mas convencidas
de que assim tinha de ser – uma recompensa pelo quê? Por nada.
A luz que se projeta de lugar nenhum.
Por que sobre esses dois e não sobre outros?
Isto não afronta a justiça? Claro que sim.
Isto não conturba nossos princípios dolorosamente erigidos,
e lança a moral de um desfiladeiro? Sim para as duas questões.

Olhem para o casal feliz.
Será que eles não podiam ao menos tentar esconder,
fingir uma leve depressão em benefícios de seus amigos!
Escutem como eles riem – é um insulto.
A linguagem que usam – de uma clareza decepcionante.
Todas as suas pequenas celebrações, rituais,
as rotinas mutualmente elaboradas –
trata-se com certeza de um complô contra a raça humana!

É mesmo difícil de saber onde as coisas podem parar
se as pessoas começarem a seguir seu exemplo.
Com o que poderão contar a religião e a poesia?
O que será lembrado? O que teremos de renunciar?
Quem suportará viver dentro dos limites?

Amor verdadeiro. É realmente necessário?
O tato e o bom senso nos dizem para passar por ele em silêncio,
como por um escândalo nos altos círculos da Vida.
Crianças totalmente perfeitas nasceram sem sua ajuda.
Ele não poderia povoar o planeta nem em um milhão de anos,
sua aparição é rara demais.

Deixem que as pessoas que nunca encontraram o amor verdadeiro
sigam dizendo que tal coisa não existe.

Esta fé há de lhes fazer mais fácil viver e morrer.


Wisława Szymborska  foi uma escritora polaca galardoada com o Prémio Nobel na área de literatura (1996). Poetisa, crítica literária e tradutora, viveu em Cracóvia, onde se formou em Filologia Polaca e Sociologia pela Universidade Jaguellonica. A sua extensa obra, traduzida em 36 línguas, foi caracterizada pela Academia de Estocolmo como «uma poesia que, com precisão irónica, permite que o contexto histórico e biológico se manifeste em fragmentos da realidade humana», tendo sido a poetisa definida, como «o Mozart da poesia»

Foto Dani Vivanco