A ÚNICA SANTA CIGANA DO MUNDO

Estamos a alguns dias do 24 de maio, dia de Santa Sara, padroeira do povo cigano, das mulheres que querem engravidar, do bom parto, dos exilados e dos desesperados. Ela é conhecida como a única Santa cigana do mundo. Porém, uma pesquisadora que conheci, no Sul da França, disse-me que na verdade, havia um culto anterior à chegada dos ciganos na região e até mesmo à lendária chegada das três santas Marias, na praia de Saintes- Maries- De- La- Mer.

Vocês já ouviram falar dessa maravilhosa história?

Há uns dez anos atrás, eu e duas amigas fizemos uma peregrinação à L’église de Notre-Dame-de-la-Mer, uma construção de pedras fortificadas, do século IX, na Camargue. Um desses lugares fora do mapa, daqueles que não se chega de trem nem ônibus. Mas, ao achar a estrada para aquela ponta no mapa, já quase na Espanha, encontra-se uma França rural e exótica, com gente andando à Cavalo com chapéus de cowboy; onde come-se linguiça de boi e bebe-se vinhos rascantes, com uma incrível beleza natural, parques de Flamingos e ornitorrincos e sobretudo, o mais interessante, uma praia que guarda mistérios.

No sul da França, na Camargue, num desses lugares fora do mapa, existe uma praia que guarda mistérios

No Sul da França, a conhecida história dos santos e discípulos palestinos de Cristo se misturava à lendas e tradições através das brumas do tempo. Após a crucificação, diz-se que José de Arimatéia, assim como outros discípulos de Cristo, teve que fugir da perseguição na Palestina. Quem já foi à Igreja de Saintes- Maries (Santas Marias ) sabe que lá dentro há diversas imagens de um barco que teria trazido àquela praia Maria Madalena, Maria Salomé, Maria Jacobé, José de Arimatéia e Sara.

Há diversas imagens de um barco que teria trazido Maria Madalena, Maria Salomé, Maria Jacobé, José de Arimatéia e Sara.

Algumas versões dizem que Sara seria uma empregada de José de Arimatéia, ou até mesmo escrava, que teria fugido com eles num barco, onde traziam à Europa o Santo Graal. Por muito tempo, teriam navegado sem rumo até conseguirem aportar nessa praia, milagrosamente. Outras versões dizem que Sara seria filha de Jesus e Maria Madalena e ainda há uma vertente na qual ela seria uma sacerdotisa local e teria acabado canonizada.

Segundo fontes da própria Igreja, que a canonizou em 1712, ela seria servente de uma das três Marias que acompanharam Jesus Cristo na via dolorosa e permaneceram firmes ao lado dele até o momento de sua crucificação. Ainda, numa tradição cristã antiga, Santa Sara era vista por cristãos como a mulher que ajudou Maria Santíssima na hora do nascimento de Jesus Cristo.

Poderia escrever um tratado sobre quais as possíveis origens de Sara Kali – que significa escura – e tem seu culto associado ao das madonas negras, mas prefiro que minha literatura seja experiência. Por isso, vou contar um pouco da minha peregrinação.

Poderia escrever um tratado sobre quais as possíveis origens de Sara Kali

Dia 24 de maio, ciganos de todo o mundo vem peregrinar e enchem a cidade para assistir à missa, celebrar, agradecer com ex-votos na gruta onde fica a imagem de santa Sara, colocar lenços sobre ela e fazer procissão até o mar. Quando tentamos sair do Hotel, o concierge nos avisou que não deveríamos sair. Pois, a cidade estava cheia de ciganos! Falou isso com entonação de pavor, como se estivéssemos nos jogando em um mar de tubarões. Preconceito não me assusta, então, respondi que era para isso mesmo que viemos recebendo de volta um típico ar blasé francês.

Ciganos de todo o mundo vem peregrinar na cidade Saintes Maries de la Mer

Chegamos numa cidade tomada por gente cantando, dançando e tocando viola em rodinhas, vestidos à caráter, numa manifestação de fé e alegria contagiante.
Conheci uma cigana, Kadija Rowena, que cantava na rua o lamento à capela mais lindo que ouvi na minha vida. Nascera na Rússia, mas morava na França, parou os turistas com sua dança e canto. Ela dormia em um trailer, lia mãos, ganhava o que precisava para comer e viver. Quando disse-lhe que não entendia do que vivia, ela me respondeu: – De amor. Pensei em todas as pessoas que conheço gastando em shoppings e Resorts, mas em poucas vejo aquele brilho de olhar. Então, meio surpresa, olhei-a mais uma vez, discretamente, tentando percebê-la, ou absorver sua intensidade: descalça, voz angelical e aura de liberdade.

Vivia de Amor. Descalça, voz angelical e aura de liberdade.

À meia noite, uma fogueira ardia na praça em meio a batidas de pés, saias girando e o vento do mistral soprando sem parar, sob a planície árida da Camargue, fazendo lembrar que tudo está em movimento.

As violas, porém, não percebiam; brandiam como se mil corações batessem. As pessoas dançavam juntas como se toda a vida estivesse pulsando em seus pés, braços e corpos e fossem embaladas pelo vento do mistral que não parava….

As violas brandiam como se mil corações batessem

Kadija se despediu de mim em francês desejando que em meu Norte, sul, leste, oeste encontrassem sempre seu caminho.

Eu sabia que era como ela, mesmo tendo vidas tão diferentes, nós escolhemos ser como a brisa: na noite da consciência, quando o oceano das regras arrefece mais lentamente, sopramos da terra, na direção oposta.

Talvez eu exista para dizer essas coisas, mas todo mundo existe para alguma coisa, por isso há também o fogo, a água, a terra e outros tipos de ventania…….
Como diz a letra da famosa melodia de um grupo cigano da Camargue ( Gipsy Kings): “ Ay este mundo de tristeza Dejar y la vive ay mi manera”.

Nota: Essa semana começa no canal Histórias Secretas a série peregrina sobre minhas viagens de pesquisa para meus livros. Para entrar na lista de pré- lançamento e concorrer a sorteios linktr.ee/patriciadeluna