Quem já ouviu uma expressão semelhante a “sai desse espelho, tá parecendo um Narciso?”, chamou alguém de “narcisista” ou aprecia as belíssimas flores de nome Narciso, não faz ideia de como a cultura greco-romana está próxima de si!

A etimologia do nome narkhé não apenas compõe o nome Narciso e seus derivados, como também o termo “narcótico”. Não é mera coincidência que a beleza do jovem, como conta o mito, era tamanha a ponto de entorpecer. Ao nascer, filho de um deus-rio com a ninfa Liríope, Narciso recebeu a profecia de que viveria por longos anos saudáveis, desde que nunca mirasse o próprio reflexo.

Caçador, muitas ninfas e espíritos da floresta apaixonavam-se perdidamente por ele, entorpecida e enlouquecedoramente. Embora não conhecesse a extensão de sua beleza, Narciso estava acostumado a ter tudo e todos a seus pés e criou para si mesmo uma casca de arrogância perigosa e cruel. Foram duas, as pobres almas que pereceram diante dela.

O primeiro foi Amínias, amigo caçador, que declarava-se para Narciso de forma constante. Porém, quando admitiu ao companheiro que não seria capaz de viver sem ser amado de volta, Narciso presenteou-o com um punhal e, desdenhoso, aconselhou-o que se matasse. Enquanto apunhalava o próprio coração, Amínias fez um apelo para os deuses, clamando por vingança.

Paralelamente, um acontecimento agitava o outro lado da floresta. A ninfa Eco, uma das caçadoras de companhia da deusa Ártemis, era amaldiçoada por falar demais. Ao espalhar um boato que ouviu sobre as amantes de Zeus, Hera condenou a jovem a sempre repetir as últimas palavras das pessoas e a exilou.

Vagando sem rumo, os caminhos da ninfa cruzaram os de Narciso e, é claro, ela se apaixonou por ele. Eco tentava declarar seu amor, mas apenas conseguia repetir as coisas que Narciso lhe perguntava.

“Quem é você?”

“Quem é você?”

“Sou Narciso”.

“Sou Narciso”.

Pensando que a ninfa estava desdenhando de si, o rapaz a humilhou e agrediu. Eco, desolada clamou aos deuses por justiça, mas não deixou de seguir Narciso por todos os lugares que ele ia, escondida.

Quem ouviu as preces de Amínias e de Eco foi a sangrenta deusa da vingança, Nêmesis. Ela enviou uma corsa até Narciso que, enquanto caçava, não percebeu que era guiado pelo animal até a margem de um lago. Aconteceu como revelado pela profecia, o jovem vislumbrou seu rosto na superfície transparente da água e apaixonou-se pelo próprio reflexo.

Narciso não conseguia comer, não conseguia dormir. Dias se passaram enquanto o cruel rapaz fazia declarações de amor para si mesmo e Eco, que permanecia fiel e atordoada a seu lado, as repetia para ele. Numa tentativa desesperada de beijar a criatura amada, Narciso caiu no lado e se afogou, obrigando Eco a reproduzir todos os sons de seu desespero, sem poder ajudá-lo por não saber nadar.

A ninfa definhou à beira do rio, incapaz de viver sem o amado. Seu espírito permaneceu vivo nas montanhas, sempre repetindo as últimas falas dos outros, vivendo sempre em função de uma pessoa que não ela mesma. Extremo oposto, Narciso não foi capaz de atravessar o rio Estige até seu julgamento final, fadado a observar o próprio reflexo na margem pela eternidade.

Narciso e Eco são a personificação de um relacionamento abusivo e co-dependente. Ela, só existe em função do outro, sendo literalmente um eco daqueles com quem se relaciona. Ele, completamente apaixonado por si mesmo, não sabe enxergar o mundo ao redor, nem as pessoas que o amam.


Foto: Reprodução do quadro Narciso, de Caravaggio