Quando pensamos nas clássicas histórias infantis nos vem à mente a imagem de uma princesa e de um príncipe que se apaixonam (às vezes, à primeira vista) e vivem felizes para sempre. A ideia de amor que habita essas histórias dialoga com outras referências que habitam diversos artefatos da cultura – do cinema às músicas, da literatura às artes visuais, da publicidade aos sites e redes sociais. Um amor que seria próprio de uma relação entre um homem e uma mulher. Assim, vamos naturalizando essa ideia como única forma de amor possível, ou seja, passamos a vê-la como natural e, portanto, como normal. Isso pode significar que outras formas de amor não o sejam.

Quando pensamos nas clássicas histórias infantis imaginamos que uma princesa possa se apaixonar pela camareira? Imaginamos que um príncipe possa se casar com outro príncipe e viver feliz para sempre? Imaginamos uma princesa que não se apaixona, que não se casa e ainda assim é feliz para sempre? Imaginamos um príncipe aprisionado em uma torre e uma princesa que o resgata? Imaginamos príncipes e princesas que se casam, mas se separam e ainda assim são felizes?

A escritora nigeriana Chimamanda Adichie nos faz pensar no perigo de uma história única[1]. Na infância, ela ouvia sobre as histórias dos europeus brancos de olhos azuis, personagens que brincavam na neve, comiam maçãs, falavam sobre o tempo e tomavam cerveja de gengibre. Como a escritora nunca havia saído da Nigéria, essas eram importantes referências, apesar de mostrar uma realidade muito diferente da vivida por ela. Adichie nos diz que somos impressionáveis e vulneráveis às histórias que nos contam. E eu vou além: somos quem somos porque essas histórias nos formam. Quando falo de histórias, não me refiro apenas a esses clássicos da literatura. Vivemos vidas recheadas de histórias, que vão se incorporando ao nosso cotidiano, nas conversas, no bate-papo mais corriqueiro, nas músicas que ouvimos sem nem pensar no que a letra diz, naquela novela acompanhada todas as noites.

As histórias sobre amor estão aí incluídas. A ideia de que um homem e uma mulher representam um verdadeiro casal, que ele e ela se completam numa relação amorosa e que sem isso não podem ser felizes, foi se naturalizando, foi se tornando uma história única e isso é perigoso, como nos diria Adichie.

O cantor e compositor João Gilberto cantava “Fundamental é mesmo o amor, é impossível ser feliz sozinho”. Será mesmo? Se uma pessoa está feliz, significa que ela está amando? Esse amor é sempre sinônimo de felicidade? Como homens e mulheres vivem esse amor? Vamos pensar nas referências a partir das quais nós nos tornamos quem somos. Desde a infância, meninos e meninas têm contato com modelos que podem vir a se tornar parâmetros dessa formação.

Para as meninas, reservamos as histórias, os brinquedos, os filmes que falam de contos de fadas, de princesas com seus cabelos e vestidos longos e brilhosos, sonhadoras, emotivas, à espera de um príncipe que chegaria num cavalo branco e que lhes faria felizes. Se perguntarmos, frequentemente as pessoas nem sabem os nomes dos príncipes dessas histórias, já que a centralidade está na princesa. Para os meninos, a formação não é a mesma. Eles são apresentados às referências de homens corajosos, aventureiros, impulsivos, que lutam, vencem desafios, se expõem a grandes perigos e os superam, graças à força e à coragem. São heróis que guerreiam, se expõem a riscos, que lidam com armas e montam estratégias para vencer o inimigo. Pensemos então: se as referências formativas de meninos e meninas são tão distintas, como isso afeta a ideia de amor romântico? Como essa construção de amor afeta a relação entre homens e mulheres? Quero pensar especialmente nos inúmeros casos noticiados e aqueles a que temos acesso em nosso cotidiano, de relacionamentos tóxicos, abusivos, violentos, que vulnerabilizam as mulheres, que as colocam num lugar de fragilidade, exatamente porque esperam se relacionar com um príncipe, mas encontram, em muitos casos, homens formados numa cultura que os incentiva a impor sua vontade, a querer dominá-las e submetê-las a um controle extremo.

Voltando à ideia da possibilidade de histórias em que teríamos amores entre duas princesas e dois príncipes: encontramos com facilidade essas histórias?

Quando pensamos em presentear uma criança com um livro, escolhemos histórias em que aparecem esses amores? Ouvimos histórias desses amores em nosso cotidiano, nas conversas corriqueiras? E nos artefatos culturais? Ao eleger o relacionamento entre um homem e uma mulher como padrão e como sinônimo de felicidade, que amores ficam de fora? Sabemos que as coisas vêm mudando. Cada vez mais encontramos essas histórias nos filmes, nas novelas, na literatura. Mas, a ideia de um romance entre dois homens ou entre duas mulheres ainda amedronta muitas pessoas. A perigosa história única que temos sobre as pessoas que amam outras de mesmo gênero é que elas estão fadadas à infelicidade, que o amor não seria uma realidade para elas. Será? Por que esses amores amedrontam? Por que não podemos ter uma diversidade de histórias de amor? Haveria amores legítimos e ilegítimos? Puros e impuros? De onde vem esse modo de pensar?

Por isso precisamos, cada vez mais, de histórias de muitos amores. Inclusive de histórias de amor das pessoas por si mesmas, nas quais não é necessário estar com alguém para ser feliz. Histórias de amor nas amizades, nas famílias. Amores plurais. Amores que não fragilizam, que não machucam. Amores que podem ser vividos publicamente, que não precisam se esconder. Amores que podem se expressar nas muitas formas de afetos. Para finalizar, volto a pensar com Chimamanda Adichie, quando ela nos diz que histórias importam, mas que elas podem ser usadas para expropriar e tornar maligno, ou para fazer ver tantas possibilidades. Histórias podem destruir ou reparar o que foi destruído. Por isso, não podemos nos render aos perigos de uma história única. Para além do amor naturalizado, que vimos aprendendo a entender como única forma normal e possível de amar, outras histórias de amor podem ser contadas.

[1] A palestra da escritora pode ser acessada no Youtube, por exemplo no  link: <https://www.youtube.com/watch?v=EC-bh1YARsc>.

Foto: Travis Chantar