O país perdeu no início desta semana um símbolo de irreverência e transgressão. Seu nome? Astolfo Barroso Pinto, mas o grande público a conheceu pelo simples nome de Rogéria. Estar sob os holofotes era mesmo o destino dessa estrela, que iniciou a vida profissional como maquiador de TV. Mas sua permanência na cena não teria sido duradoura se ela não tivesse dois atributos: talento e inteligência. Esses dois predicados foram fundamentais para ela perseverar nas carreiras que abraçou como foram importantes para abrir caminho para outros artistas transgêneros. Nomes que, até seu surgimento no showbiz, eram marginalizados.

Eu a conheci no hoje extinto Blue Angel, bar que funcionou no Posto Seis, em Copacabana, point de artistas e do público LGBT. O dono do bar, o querido Zeca, era um entusiasta das artes e, em 2001, criou um prêmio para nomes que se destacavam nas suas áreas. Rogéria foi uma das escolhidas, assim como eu, um estreante na Literatura. Começamos a nos aproximar ali e, quando nos encontrávamos, falávamos sobre livros, teatro, cinema e musicais, esses dois últimos os temas de sua predileção. Ela era mais de falar do que ouvir. Mas, entre um e outro comentário, botava azeitona na minha empada, destacando o tantinho de cultura que eu havia adquirido.

“As bichas da tua idade não conhecem NADA!”,  alfinetava com certa razão.

Foto: Acervo pessoal Christovam De Chevalier

Viemos a trabalhar anos depois no musical “Rogéria e os Astolfos”, apresentado por ela no Teatro Clara Nunes, e que contou com os préstimos meus e do querido (e saudoso) Alexandre Silpert na assessoria de imprensa. Precisávamos entrevistá-la para o release e combinamos um almoço na Fiorentina, perto de sua casa. Foi um sábado de conversas deliciosas, com direito a uma e outra revelação picante que morrerão comigo. Num dado momento, ao falar que nunca colocara silicone nos seios, vai e pimba: abaixa o decote da blusa e mostra um dos mamilos, nem aí para o salão lotado. Assim era Rogéria.

Sobre o musical, bem… Acabamos levando um beiço dos produtores, mas isso só nos aproximou mais. A cada matéria publicada ou veiculada, agradecia. “Monsieur Chevalier. C’est Rogérrrria” eram as suas primeiras palavras na secretária eletrônica. Assim era Rogéria.

Seu lado histriônico rendia também uma e outra saia justa, é verdade. Certa vez, Silpert e eu divulgamos uma das muitas edições do show “Golderança”, que reúne os Golden Boys, a cantora Evinha e o Trio Esperança, e chamamos Rogéria para assistir a uma das apresentações. Lá pelas tantas, num intervalo entre as canções, deu para chamar insistentemente por Evinha. “O que foi, Rogéria?”, devolveu a cantora com certa rispidez. A tensão foi dissipada no camarim, onde, findo o show, todos se abraçaram e riram do ocorrido. Artistas têm a sensibilidade à flor da pele e, no fundo, se entendem. Melhor assim.

Rogéria não era Amélia (apesar da rima), mas era uma mulher de verdade. Era de verdade porque trazia consigo outro atributo que as mulheres têm: a coragem. Coragem de se expor, de tocar em tabus e de lamber as próprias feridas. Vai fazer falta num país que dá sinais de intolerância e retrocesso crescentes a olhos vistos. Num mundo onde o obscurantismo ganha mais e mais terreno. Por isso, quero guardar comigo um tanto do que fez dela esse ser iconoclasta. E, na cara dura, roubo o comentário postado pela querida Vanessa Rivera numa rede social e me despeço com a saudação:

“A Rogéria que há em mim saúda a Rogéria que há em você”.

Namastê, adorada!

Foto: Marcos Ramos / Agência O Globo