Mia Couto é biólogo, escritor, poeta. Nascido em Moçambique em 1955, estudou medicina, trabalhou como jornalista, mas consolidou sua carreira dentro da literatura e da biologia. Como biólogo, é diretor da empresa Impacto (Avaliações de Impacto Ambiental), em Moçambique.

Como escritor e poeta, atualmente, é o autor africano mais traduzido internacionalmente, tendo mais de 30 livros publicados. Ao longo de sua carreira literária, coleciona importantes prêmios, dentre eles, o prêmio Camões, o prêmio Vergílio Ferreira pelo conjunto de sua obra e o prêmio União Latina de Literaturas Românicas.

Mia Couto é um semeador, colhedor e contador de histórias. Sua literatura traz a herança do solo, das árvores, das fontes, das crenças africanas e é amparada por seres que se sabem extensão da natureza. Íntimo do que não tem tradução, criou um amplo repertório de neologismos. Sua literatura revela a nobreza da fala simples e rural, eleva à alta potência a voz popular. Mia é um sábio sem pretensão de sabedoria, um leitor tão ávido quanto escritor, um ser tão humano quanto incrível. Ouvinte curioso e disponível, põe-se a escutar feito o menino que se demorava no chão da cozinha da mãe a colher sutilezas. Gentil, afetuoso, receptivo, tem gestos contidos e sua voz é serena. Sua alegria é tímida, mas cheia de bondade, pois é uma alegria que diverte o Outro. Possui um senso de humor apuradíssimo. Mia Couto inspira e expira amorosidade.

Mia Couto e Marla de Queiroz

Nessa entrevista concedida à revista Vênus Digital, Mia Couto fala sobre a falta, sobre o processo criativo, sobre a desilusão e, claro, sobre o amor.

Vênus Digital- Você é biólogo, escritor, trabalhou como jornalista. Sua vida sempre foi muito produtiva e você carrega excelência em tudo o que faz. Como é a sua rotina e como você administra seu tempo para que seja possível produzir tanto mesmo com todas as viagens, congressos, projetos, palestras?

Mia Couto- Não tenho rotina, o meu quotidiano é um caos. Acabei entendendo que esse caos – que tanto me atrapalha – é o meu modo de ser e de fazer. Passo a vida maldizendo essa desarrumação interior, mas no fundo, entendo que essa balbúrdia me permite estar em sintonia com os casos do mundo. É nesse caos que moram os casos. Os casos de beleza que me seduzem.

Vênus- O que é primordial para um escritor? O que você diria para um escritor que está iniciando sua carreira?

Mia- Que não se pense escritor. Quando se é escritor isso transborda naturalmente. Que menos ainda pense em carreira. Quem tem carreira são os funcionários. O escritor – como qualquer artista – tem um percurso e, nesse percurso, ele estará sempre começando, será sempre um aprendiz. E que não pense que as histórias nascem de uma técnica, de um curso. Elas nascem da entrega aos outros, da capacidade de escutar a alma das pessoas que a vida tornou mudas e invisíveis.

Vênus- Você acha que as pessoas confundem carência com amor? O que diferencia um do outro?

Mia– A diferença é muito tênue. Carência e amor têm uma raiz comum. Isto é, a nossa espécie é ciosa de sentimento amoroso porque a sua sobrevivência depende desse laço de afeto absoluto. A espécie humana nasce num estado de total dependência. Não sobrevivemos na primeira infância se não formos amados todos os dias, a todo o momento. A pequena criança aprende os modos de seduzir e não pode nunca deixar de sentir que é o centro, que merece toda a atenção de quem dela se propõe a tratar. O desejo de ser amado nasce dessa carência.

“Se o amor tivesse definição ele morria. Isto parece uma declaração muito cor-de-rosa. Mas o amor é como a vida: não pode ser reduzida a uma definição. E é esse o encanto, é ele estar para além da razão.”

VênusDentro da sua história bem-sucedida e do reconhecimento pelo seu trabalho, houve uma mudança brusca na sua vida? O que você procura preservar? Você já se sentiu perdido? Como você lida com isso?

Mia- A única coisa que mudou foi uma certa segurança, um acerto com a ansiedade. Não que buscasse o sucesso (tenho uma péssima relação com a ideia da fama). Mas eu carreguei da minha infância inseguranças que me roubavam acesso à felicidade. Agora, respondendo à segunda parte da pergunta: estou sempre perdido. O que aprendi foi a deixar de ter medo desse sentimento de desnorteio. Aprendi mesmo a gostar dessa ignorância, do não saber exatamente onde estou. Porque me faz avivar uma ideia de busca. Quem não sabe onde está tem que saber melhor com quem está. Assim, o Outro se torna mais presente. O que quero preservar? Quero preservar, sim, um espaço de privacidade, de intimidade comigo mesmo. Quando estou com alguém que me fala dos meus livros preciso não de um fã, mas de um ponto de vista crítico, preciso de alguém que se coloca na posição de verdadeiro leitor, isto é, de um coautor do livro.

Vênus- Como é a sua relação com o Tempo? O tempo dos dias e o tempo das idades?

Mia- Desvalorizo-o quase sempre. Dou conta dele quando nele tropeço. Não uso relógio, a maior parte das vezes não sei sequer em que dia da semana ou do mês me encontro. Tenho, felizmente, uma família e amigos, muito pacientes. Mas eu faço isto por natureza e por intenção. Existe uma vantagem de não dar tanta confiança ao tempo formal e cronológico: é poder viver num tempo feito por nós.

Vênus- O que te inspira?

Mia- A vida quando ela se revela frágil e inacabada, como se fosse nós que a trouxéssemos ao colo. As pessoas quando se expõem de alma desarmada, sabendo que apenas nas outras pessoas se completam.

Vênus- Você acha que a hipersensibilidade é o que caracteriza um artista?

Mia- Não sei. Talvez a consciência que o artista tem de algo que lhe falta e, esse “algo” não tem contorno, essa carência não tem nunca solução. Todos os seres humanos partilham desse sentimento. Há os que, para vencerem o medo de haver um fim, procuram a beleza ou buscam uma história que nos invente momentos de eternidade.

VênusO que te falta, Mia Couto?

Mia– Quase tudo. Sei que fui conquistando serenidade, capacidade de me avaliar com verdade, um modo de relativizar as coisas. Não sei dar nome ao que me falta. Nem quero. Gosto de sentir essa carência como uma miragem, uma linha do horizonte que se afasta sempre que dela me aproximo.

Vênus- O que você diria para alguém desiludido?

Mia- Que o problema não é a desilusão. Mas a ilusão. Que o remédio não é o que está mais à mão que, em geral, é a culpa, o ressentimento. A solução mais profunda é sempre questionarmos o porquê da ilusão. E encontrarmos em nós mesmos a razão de um qualquer equívoco.

Vênus- Quais os elementos para uma boa história de amor?

Mia– É uma sábia mistura de felicidade e infelicidade, de quotidiano e de inesperado. Para encantar ela tem que ter qualquer coisa de inacreditável.

Vênus- O que poderia ainda ser dito sobre o amor? Para você, o que é o amor?

Mia- Imagino essas flores que, colhidas, murcham. Se o amor tivesse definição ele morria. Isto parece uma declaração muito cor-de-rosa. Mas o amor é como a vida: não podem ser reduzidas a uma definição. E é esse o encanto, é ele estar para além da razão.