Há uma pensata, da escritora e imortal Nélida Piñon, que diz muito sobre os artistas que perseveram nos seus ofícios. Todos os dias, segundo a escritora, alguém bate à sua porta e te convida a desistir.

A atriz Guida Vianna pensou muitas vezes em desistir. Mas a paixão pela sua profissão acabou sempre falando mais alto – para alegria dos seus colegas, do público e daqueles que foram seus alunos no Tablado e que, hoje, brilham na TV e nos palcos. São nomes como os de Debora Lamm, Fernando Caruso, Dani Barros e Camila Pitanga, entre outros tantos.

Guida tanto insistiu que, em 2016, completou 40 anos de carreira (hoje são 42). E a comemoração, claro, foi no palco. Guida estrela “Agosto”, do americano Tracy Letts, vencedora de um Tony e de um Pulitzer, na qual está à frente de dez atores, todos excelentes (o que é raro de ver em muitas produções). Ela  vive em cena o papel que, no cinema, foi de Meryl Streep. E não deixa nada a desejar à estrelona americana. A peça estreou em 2017 e cumpre atualmente sua terceira temporada na cidade, podendo ser vista no Sesi do Centro.

Guida Vianna com Letícia Isnard em cena da peça Agosto

Ambas indicadas ao prêmio Shell na categoria Melhor Atriz por suas interpretações em “Agosto”

Nesta entrevista, Guida fala da carreira longeva e também de temas como assédio, desejo, o politicamente correto e drogas.  E não fugiu da raia ao tratar de nenhum deles, mostrando que, além de uma grande atriz, é, sobretudo, uma grande mulher.

Você imaginava chegar a 40 anos de carreira?

Guida: Não. Em nenhum momento imaginei. Até porque em muitos momentos pensei em desistir. O caminho é árduo quando se faz arte no Brasil, principalmente no Teatro. É uma vida cheia de altos e baixos, e o teatro de dramaturgia é o primo pobre do Teatro.  Nós, atores, estamos sempre com o pires na mão. Há muito que o Teatro não se sustenta mais com a sua bilheteria e, de uns tempos para cá, o público vem reduzindo. As pessoas hoje vão ao teatro para se divertir e, neste sentido, o teatro de dramaturgia acaba prejudicado. Quando se é jovem, tudo é mais fácil. A gente fazia teatro em grupo e muitos de nós morávamos com nossos pais. Na maturidade, ficam mais freqüentes os hiatos entre um trabalho e outro. E você se pergunta: o que estou fazendo aqui? Muitas vezes me fiz essa pergunta.

A sua personagem faz muitos comentários politicamente incorretos, sobretudo aos olhos de hoje. Como você vê todo esse patrulhamento que ganha mais e mais força no nosso país?

Acho que tanto o politicamente correto quanto esse “lugar da fala” são inconvenientes para a arte. A arte tem de ser transgressora. Tem de fazer com que as pessoas enxerguem uma determinada situação de um lugar que elas não conhecem ou não estão acostumadas. Esse negócio de que eu não posso falar dos negros porque não sou negra…   Ou de não poder falar dos gays porque não sou gay  presta um desserviço ao trabalho artístico. O que eu vou colocar na obra não é o lugar do preconceito. Até porque a função do artista é a de jogar luz sobre lugares nem tão vistos pela sociedade.  O artista tem de dar maior visibilidade a esse lugar ou a uma discussão, levando as pessoas a pensar e a refletir sobre aquilo. A minha personagem, por exemplo, é uma mulher inconveniente…

Mas muito certeira nos seus comentários…

Sim! Ela é extremamente desagradável, e eu a faço exatamente como penso que ela é. Quero que as mães que assistam à peça saiam do teatro se perguntando: será que ajo assim com meus filhos? No caso da minha personagem, quero levar as pessoas a verem aquelas questões de um lugar que não seja o delas. O artista abre uma (lente) grande angular sobre as coisas. O artista tem de ser livre.

Recentemente as atrizes americanas se uniram contra o assédio que sofrem dos homens. E isso levou as atrizes francesas a se posicionarem contra a criminalização do desejo. Como você vê essa questão?

Adorei o manifesto francês. Tem uma coisa que me incomoda na sociedade norte-americana que é esse puritanismo. Nos EUA há essa propensão a  se fazer uma caça às bruxas com quase tudo. Vejo com estranheza alguém resolver detonar um profissional vinte anos depois porque recebeu do sujeito uma proposta indiscreta. O que me incomoda de fato é esse assédio da opressão, esse que é ligado a deter certo poder sobre algo. E ninguém tem o direito de oprimir ninguém. E essa opressão, sim, tem de ser criminalizada. Veja você, o ser humano é movido por interesses e desejos… Se a gente criminaliza o interesse pelo outro, com que motivação vamos sair de casa para trabalhar? Sem o interesse pelo outro, vai passar a ser um saco viver em sociedade.

Você já perdeu algum papel por não se submeter a esse tipo de jogo?

A gente perde o tempo todo! Muitas vezes disse a esse ou àquele diretor: amigo, vai jantar lá na esquina, vai! Eu mesma escolhi a minha profissão e sustento essa escolha ao longo desses anos todos. E nunca me coloquei como oprimida. Não é um papel perdido que vai mudar a minha carreira. Se tenho medo, ou oscilo entre ceder ou não a uma oferta, é porque a minha convicção está fraca, e isso precisa ser repensado. Sou solidária às mulheres quando o ponto a ser combatido é o assédio ligado à opressão. Acho importante existir o “Time’s Up” ( movimento de combate ao assédio às mulheres). E as atrizes americanas têm mais é que ajudar essa causa, pois ganham milhões.

Marianna Mac Niven, Claudia Ventura, Guida Vianna e Letícia Isnard em cena da peça Agosto.

Voltando à tua personagem, ela é dependente de ansiolíticos. Como você vê essa grande tolerância às drogas lícitas que há no Brasil?

Vejo como uma grande hipocrisia. No Brasil o alcoólatra está liberado para ser alcoólatra. Um dependente de calmantes sempre dá um jeito de conseguir uma receita para comprar mais remédios. Por que então não liberam o consumo de maconha? Vejo essa política das drogas como muito hipócrita. Sem falar que o Congresso que deveria nos representar está ainda no século XIX. Quando ele chegar ao século XX, e nem falo aqui do século XXI, talvez essa questão do consumo ou da liberação das drogas seja discutida mais a fundo. Se você investigar, certamente vai ver que muitos dos nossos  congressistas têm lá os medicamentos dos quais não abrem mão.

Você já trabalhou com atores de diferentes escolas como Marieta Severo e Maria Padilha, entre outros tantos… O que você traz de enriquecedor de cada um desses encontros?

Uma das grandes qualidades do teatro para mim é essa interligação de gerações. Cresci tendo a oportunidade de ver grandes atores em cena: Paulo Autran, Bibi Ferreira, Lilian Lemmertz… Todos eles são ou eram pessoas que conheciam a profissão dos pés à cabeça. E esses caras deram aos atores da minha geração um certo comprometimento com o nosso ofício. A gente sabia que tinha de ser muito bom.

Algum desses grandes nomes foi um modelo a ser seguido por você?

Eu tinha loucura pela Marília Pêra.

Com quem você veio a trabalhar (na comédia “Gloriosa”, em 2009)…

Sim, trabalhamos juntas e ela nunca reclamou de nada (risos). Voltando à sua pergunta, quando falei dessa interligação de gerações, por outro lado, o fato de poder trabalhar com atores mais jovens é enriquecedor, pois eles têm um descompromisso que pode ser visto de forma positiva. Um olhar aberto para o novo. E o teatro propicia isso.

Você deu aula de teatro no Tablado por 30 anos. E, com isso, colaborou para colocar no mercado talentos da nova geração. Por que decidiu aposentar-se como professora?

Percebi que tinha um gap grande entre a minha geração e essa garotada que está chegando agora. Também pesou nessa decisão a vontade de me dedicar mais à carreira de atriz, a vontade de produzir as minhas coisas. Quis voltar essa energia que ainda tenho mais para mim.

E qual o legado que a Guida professora deixa para a Guida atriz?

Essa experiência de ter dado aula me proporcionou uma troca muito prazerosa. Se não sou hoje uma pessoa antiquada devo muito a ter dado aulas. Tenho muito orgulho dos alunos que seguiram na profissão, mas tenho também muita admiração por aqueles que seguiram outros caminhos.  Digo isso porque, nesse último caso, são pessoas que também são muito atuantes nas profissões que escolheram. Certa vez, ouvi de um ex-aluno um comentário que tem muito a ver com isso que estou falando. Ele me disse que se tornou um ser humano melhor por ter feito teatro. O Teatro tem esse mérito: ele abre o olhar da gente.

Elenco da peça Agosto

A peça Agosto está em cartaz no teatro Sesi Centro, de 11/01/2018 a 04/02/2018

Ficha Técnica

Gênero: Comédia dramática
Duração: 120 min

Texto: Tracy Letts
Tradução: Guilherme Siman
Direção e adaptação: André Paes Leme
Direção de produção: Andrea Alves e Maria Siman
Idealização e coordenação: Maria Siman
Assistência de direção: Anderson Aragon
Elenco: Guida Viana, Letícia Isnard, Alexandre Dantas, Claudia Ventura, Cláudio Mendes, Eliane Costa, Guilherme Siman, Isaac Bernat, Paulo Giardini , Julia Schaeffer, Lorena Comparato e Marianna Mac Niven
Iluminação: Renato Machado
Cenografia: Carlos Alberto Nunes
Figurinos: Patrícia Miniz
Música: Ricco Vianna
Programação visual: Mais Programação Visual
Realização: Sarau Agência de Cultura Brasileira e Primeira Página Produções Culturais

Fotos: Silvana Marques

Em cartaz

11/01/2018 a 04/02/2018

Valor

R$ 40 (inteira) | R$ 20 (meia)

Local

Teatro SESI Centro
Av. Graça Aranha, 1 – Centro
Vendas de ingressos: segunda a sexta, das 12h às 20h. Sábados, domingos e feriados, quando houver atração, duas horas antes, na bilheteria do teatro.
Rio de Janeiro – RJ