Amor sem sexo é sempre amizade? Sexo sem amor é possível? Para quem?

A cantora Rita Lee, em sua música “Amor e Sexo”, nos conduz a um dilema histórico: “amor sem sexo é amizade, sexo sem amor é vontade”. Na música, amor e sexo vão sendo apresentados às vezes distintos; outras, como complementares. Cada palavra usada para adjetivar o amor e o sexo nos direciona para pensar as relações contemporâneas. Amor sem sexo é sempre amizade? Sexo sem amor é possível? Para quem?

O sexo tornou-se uma questão moral importante da nossa época, um elemento de controle, vigilância e julgamento dos comportamentos. Mas, isso não se apresenta do mesmo modo para todas as pessoas, especialmente quando se trata da questão de gênero, ou seja, mulheres e homens têm no sexo uma experiência vivida de modo bastante distinto. O controle sobre os corpos das mulheres e sua sexualidade se exerce de modo muito mais incisivo. Basta observarmos que as liberdades sexuais são vividas com mais abertura pelos homens. Aliás, é esperado que homens tenham vidas sexuais ativas e que explorem ‘quantitativamente’ o sexo como um “esporte”, como uma “invasão”, diria a música de Rita Lee.

Você já parou para pensar que muitos dos xingamentos em nossa língua se remetem à sexualidade feminina dita ‘mais livre’? Isso atravessa a educação de meninos e meninas, como já lhes apresentei em textos anteriores: as referências das meninas são emoção, paixão, delicadeza, amor romântico; para os meninos, ficam reservados os referenciais de coragem, força, impulsividade, virilidade. E aí, quando amor e sexo se encontram nas relações entre homens e mulheres, nem sempre há sintonia no que guia essas pessoas. Nas relações homoeróticas não é tão diferente assim, considerando que as referências de amor e sexo que chegam às pessoas hetero e bissexuais também atravessam pessoas lésbicas e gays. A idealização do amor romântico como objetivo e a moralização da vida sexual atingem as relações de pessoas LGBTI+ de forma também incisiva. Aliás, há uma forte sexualização dessas pessoas, tidas como promíscuas, libertinas, desenfreadas sexualmente.

A idealização do amor romântico como objetivo e a moralização da vida sexual atingem as relações de pessoas LGBTI+ de forma também incisiva

Em uma cultura tão ‘sexo-normativa’ como a nossa, ou seja, quando o sexo é uma experiência tão intensamente presente em nossas vidas, como forma de controle, vigilância e como elo das relações entre as pessoas, quem não se envolve sexualmente, quem não têm ‘vida sexual’, vive às margens ou se torna objeto de atenção, como uma espécie de ‘anormalidade’ ou ‘problema’. A intensificação do sexo como exigência de felicidade, de saúde, de sucesso na vida é propagandeada por vários meios. Nas diferentes mídias, sexólogas/os e outras/os especialistas aconselham, dão dicas de como incrementar a vida sexual, de como estar satisfeito/a nas relações sexuais, seja nos relacionamentos duradouros, seja naqueles mais casuais. Porém, há pessoas cujo interesse pelo sexo é nulo ou bem pouco expressivo. Para essas pessoas, sua libido ou o foco do seu prazer não se volta necessariamente para o sexo, mas sim para outras dimensões da vida e outras relações. Experiências como a do trabalho, dos estudos, da família, da amizade são tão ou mais prazerosas para essas pessoas quanto o sexo é para as demais.

No vocabulário das sexualidades, as pessoas que têm pouco ou nenhum interesse pelo sexo são chamadas assexuais[1]. As assexualidades[2] são formas de expressão dos prazeres que não têm no sexo sua realização obrigatória. Não se trata de ausência total de sexo, pois, como o plural da palavra sugere, há múltiplos modos de expressá-la. Há situações específicas e determinadas condições em que pessoas assexuais podem vir a sentir apreço pelo sexo. Nesse caso, o sexo não depende ou não está ligado necessariamente ao envolvimento emocional, amoroso. Há pessoas cuja prática do autoerotismo – popularmente conhecida como masturbação – é preferível, ou seja, estão numa relação consigo mesmas, com seu corpo, que lhes dá prazer e com a qual se sentem confortáveis. Há também pessoas que encaram os relacionamentos como angustiantes, especialmente quando envolvem a obrigatoriedade do sexo como requisito para sua permanência. Ter que fazer sexo, como uma espécie de obrigação social para manter um relacionamento, é algo muito difícil para muitas pessoas, especialmente para pessoas assexuais. Mas, pode haver também pessoas que somente se interessam em relações sexuais quando há algum vínculo afetivo, o que é uma possibilidade tão legítima de expressão das sexualidades quanto as demais.

Ter que fazer sexo, como uma espécie de obrigação social para manter um relacionamento, é algo muito difícil para muitas pessoas, especialmente para pessoas assexuais

A pressão dos relacionamentos, associando amor e sexo à felicidade e ao sucesso, faz com que tais experiências não sejam prazerosas para todas as pessoas. O caso das pessoas assexuais nos indica que existem múltiplas formas de encontrar prazer, realização e felicidade, fazendo ou não sexo, estando ou não em uma relação amorosa. “Prefiro comer um bolo de chocolate”, afirmam algumas pessoas assexuais. Para elas, essa delícia é melhor do que sexo, é uma experiência mais prazerosa, mais excitante. Como disse anteriormente, em uma sociedade como a nossa, em que o sexo e as relações amorosas são supervalorizados, especialmente quando vêm “no mesmo pacote”, as pessoas assexuais e as pessoas arromânticas sofrem os efeitos da inadequação ao modo de vida que é mais preconizado.

Voltando à questão inicial que abre este texto, sexo e amor nem sempre caminham lado a lado. Ser feliz sozinho, ser feliz em relações com ou sem amor, ser feliz sem sexo ou ocasionalmente com sexo, enfim, tantas são as possibilidades e não há anormalidade ou ‘problema’ em qualquer dessas experiências. E, assim, podemos questionar a música de Rita Lee: “Amor é um”? “Sexo é dois”? “Sexo antes” e “amor depois”? “Sexo é escolha” e “amor é sorte”? Mas, podemos com ela concordar que amor pode ser para sempre (ou não!) e sexo também! Para sempre? Que seja eterno enquanto dure, como diria outro poeta, que seja do modo como cada pessoa quiser.

Photo: Wesley Balten

[1] Saiba mais em https://www.bbc.com/portuguese/geral-45634242.

[2] Saiba mais em https://www.ladobi.com.br/2017/02/arromantico-assexual-kotaline-jones/.