Quando você pensa em família, que imagem lhe vem à mente? Um rápido exercício de pesquisa no Google Imagens nos apresenta uma visão que eu diria ser muito comum: pessoas felizes, reunidas, de mãos dadas, abraçadas ou sentadas ao redor de uma mesa, festejando, confraternizando. Quando conversamos com as pessoas sobre família, em geral, ouvimos relatos de amor, de alegrias, de cuidado, de proteção. A família seria, assim, formada por pessoas que nos querem bem, com as quais podemos contar para nos proteger, para nos apoiar, para nos amparar nos momentos de maior necessidade. O que as imagens e os relatos parecem não contar é que nem sempre são representativos do cotidiano vivido por muitas e muitos de nós. Estou falando especialmente das pessoas LGBTI+.

É comum ouvir de pessoas LGBTI+ relatos sobre relações estremecidas, episódios de conflitos, chegando mesmo às agressões de todo tipo, vindo de suas famílias. Em um contexto sociocultural no qual ser LGBTI+ não é um valor, pertencer a um grupo familiar dito ‘tradicional’ (com todas as ressalvas possíveis a essa palavra) pode representar ameaça, sofrimento, adoecimento e, por vezes, morte.

O que significa dizer que ser LGBTI+ não é um valor? Bom, vamos pensar numa situação hipotética, em que uma mãe é questionada sobre o feto que carrega em seu útero: que filho ou filha você gostaria de ter? Prefiro imaginar que a resposta dessa mãe viria na forma de negativas, ou seja, que filho ou filha ela não gostaria de ter. Talvez dissesse que não gostaria de ter um filho ou filha desonesto/a, sem projeto de vida definido. Indo mais além, talvez dissesse sobre a infelicidade de ter um filho ou filha ladrão/ladra, assassino/a, corrupto/a. Mas, se perguntada sobre a sexualidade desse/a filho/a, suponho que a resposta seria mais imediata: tem que ser heterossexual!

A heterossexualidade é um valor que guia as famílias na educação de seus filhos e filhas. Direta ou indiretamente, os ensinamentos familiares que vão nos formar convergem para isso. O valor maior é que todas as pessoas sejam heterossexuais. Embora as famílias não se deem conta disso, elas ensinam, reafirmando a todo instante, que tudo que é correto e normal está relacionado a esse valor.

Isso quer dizer que, antes mesmo de a criança nascer, há um mundo previamente organizado e há também muitas expectativas sobre a chegada desse novo ser, muitas delas envolvem como cada família concebe qual pessoa aquela criança deverá se tornar. Por exemplo, essas expectativas envolvem uma visão do que é ser menino/homem – pegador, macho, impositivo, com determinados gostos que envolvem o que poderia ser chamado de “mundo masculino”, como jogar futebol, sair para paquerar, entre outras. Essas expectativas vão se materializando no tipo de educação que as famílias propõem ou impõem aos seus filhos e filhas. De muitos modos, constatar que um filho é gay frustra essas expectativas e os ensinamentos delas derivados, por três motivos principais.

Primeiro, as expectativas da família partem de uma visão de que ser homem e ser mulher é ser heterossexual, e ser heterossexual é viver como um homem, na visão padronizada imposta socialmente. Ser gay nessa visão é aproximar-se do que é feminino, portanto, não seria condizente com o ser homem. Segundo, a constatação de que um filho é gay frustra a ideia de continuidade da família e dos/as progenitores/as, como se representasse a ruptura com uma linhagem, ou seja, uma descontinuidade de um projeto de futuro e de memória. É como se pai e mãe pensassem: minha vida e minha existência se mantêm vivas na vida do meu filho e filha e nos filhos e filhas que eles/as gerarão. Terceiro, porque há uma ideia de família como aquela que tem o filho ou a filha sob sua tutela exclusiva, quer dizer, como um ser dependente do que a família entende ser melhor e mais correto, o que cria dificuldades para que a pessoa tenha modos de ser, de pensar, de agir e viver em desacordo com as concepções da família. Com isso, expectativas, sonhos, projeções podem ser rompidos. O filho pode vir a gostar de futebol e ser gay; a filha pode vir a gostar de atividades consideradas propriamente femininas e ser lésbica; o filho e a filha podem não gostar dessas atividades que seriam próprias de seus gêneros e serem heterossexuais.

Agora, você leitora, leitor, tem os elementos principais para pensar como a hegemonia da heterossexualidade impacta, em um número lamentavelmente excessivo de casos, a relação das famílias com seus filhos e filhas LGBTI+. Se a heterossexualidade é o valor que orienta as relações familiares, não é difícil imaginar as dificuldades que vão enfrentar filhas e filhos lésbicas, gays, bissexuais, pessoas trans, intersexuais e quaisquer outros que construam suas vidas de modo distinto desse valor. Muitas famílias, ao descobrir que seus filhos e filhas são LGBTI+, os/as agridem, verbal e fisicamente, os/as constrangem, negligenciam o que é básico para a sua vida – alimentação, lazer, educação, saúde, chegando mesmo a negligenciar a moradia, ou seja, expulsam seus filhos e filhas de casa. Com isso, podemos pensar que a família, ao invés de ser o apoio, a proteção, o cuidado, se torna parte da rede social que discrimina, machuca, faz sofrer. Ser discriminado/a ou violentado/a por ser LGBTI+ é algo profundamente devastador. No mundo em que vivemos, ser LGBTI+ nos coloca em situações de vulnerabilidade. Imagina passar por isso sem o apoio e os cuidados de sua família? Onde fica o amor que seria próprio das famílias? O amor que estaria acima de tudo? A não aceitação do filho ou filha LGBTI+ nos mostra que a visão de família que temos pode não ser aquela presente na vida de muitas pessoas. A família pode ser lugar de ódio.

Quero concluir meu texto dizendo que, para além dos casos de ódio de famílias em relação aos seus filhos e às suas filhas LGBTI+, também conheço casos de amor. De amor cúmplice e intenso, que protege, acalenta, luta junto. De amor que apoia em todos os momentos. Essas famílias também existem. É preciso que mais e mais famílias se sensibilizem, que sejam um dos pontos de apoio numa sociedade que não nos quer vivos, que nega e deslegitima nossas existências o tempo todo. O amor que desfaz os rótulos e faz conviver as diferenças sem anulá-las. Ser LGBTI+ não é tudo o que somos, mas é algo muito importante em nós e poder contar com esse amor faz toda a diferença!


Foto – A artista plástica Rafa Mon e  Davi Tucci – Ladiva Mon, mãe militante da causa LGBTI+ posando em frente ao painel que grafitou em homenagem ax filhx.

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