Essas alegrias violentas têm fins violentos,
 falecendo no triunfo como o fogo e a pólvora

que, num beijo, se consomem. O mais delicioso
mel é repugnante por sua própria delícia; confundindo,
com teu sabor, o paladar mais voraz.

William Shakespeare. Romeu e Julieta (ato II, cena VI).

Quem nunca ouviu a história de Romeu e Julieta, os desventurados amantes de famílias inimigas? William Shakespeare, no auge das produções teatrais da Inglaterra Elizabetana, bebeu nas fontes cristalinas da cultura greco-latina para criar uma de suas mais famosas obras de arte.

A tragédia de Píramo, “singular entre os rapazes”, e Tisbe, “superior em formosura a todas as donzelas do Oriente”, possui assustadoras semelhanças com a história do nosso jovem casal de Verona. Seu registro mais conhecido foi feito pelo poeta latino Ovídio, em suas Metamorfoses (Livro IV, v. 55-166).

Aqui, a história é ambientada na antiga Babilônia, onde as casas de duas famílias inimigas são divididas por forte e extenso muro de pedra. Nele, havia uma pequena rachadura, por onde Píramo e Tisbe trocavam sussurros, olhares e pequenos toques amorosos. Ali estava, enroscando-se pela parede de concreto como um ramo de hera, a única fenda no ódio de seus ancestrais: o Amor.

Como Romeu e Julieta na obra shakespeariana, Píramo e Tisbe tramam em segredo sua fuga da cidade. Beijam-se por entre a rachadura no muro e combinam de se encontrar ao pé da antiga Sepultura de Nino, embaixo de uma árvore de frutos brancos — uma amoreira.

É chegada a hora da fuga, a noite cai e a carruagem do Sol corre para baixo do oceano. Tisbe chega primeiro ao local de encontro, sua beleza ilumina-se com a luz das estrelas que nascem. Contudo, ela é surpreendida por uma leoa, suja com o sangue de uma caçada anterior. A donzela foge para de esconder, mas seu véu perfumado cai no chão atrás dela.

A leoa, atraída pelo cheiro fresco, despedaça o véu — ainda faminta! — mas logo vai embora. Quando Píramo chega aos pés da amoreira, tudo o que vê é o animal a uma boa distância do vale e o véu rasgado de sua amada coberto de sangue. Conta Ovídio que ele cobre o tecido de beijos, saca seu punhal do cinto, e chora: “O meu sangue também te regue. Recebe, triste véu, este meu sangue”. Com esta sentença, enterra a lâmina contra o próprio coração.

Mas, logo vinha Tisbe, percebendo que a leoa se afastara e que não havia mais perigo. Ela vê o amado — a primeira vez que realmente o vê, fora de uma de fina fenda na parede — caído na relva coberta de amoras, abraçado ao seu véu, todos sujos de sangue rubro.

Tisbe o abraça e beija, tenta acordá-lo chamando seu nome. Os olhos de Píramo tremulam e a vêem, antes de se fecharem para sempre. “Teu amor, tua mão, deram-te a morte!”, ela diz debruçada sobre o corpo dele, “mas eu também tenho mãos, e também tenho amor, […] te seguirei! Pois da sua desventura sou a causa e a sócia”.

A moça arranca a espada do peito do amado e atravessa em seu próprio coração, morrendo nos braços de seu amor, como Julieta nos de Romeu. Os deuses, entristecidos com aquela história, tingiram todas as amoreiras brancas com o vermelho do sangue de Píramo e Tisbe. E assim elas ficariam para sempre.


Imagem: Pímaro e Tisbe – Pintura de Andrea Esposito