Acordo e canto uma canção, procuro um lápis e inicio um desenho, um esforço em riscar uma folha de papel, uma necessidade primária de expressão da minha condição de ser humano.

O que nos move em agir no mundo, em manter, além da sobrevivência, além de suprir a fome, é o exercício e a capacidade de imaginar o mundo, de contar histórias, de produzir imagens, de escrever uma poesia, uma música. A existência humana, ou como diria Hannah Arendt, é uma condição submetida à natureza, a necessidade de se alimentar todos os dias, de fazer as necessidades fisiológicas, de se abrigar do calor ou do frio, de alimentar seus descendentes, e por aí vai.  Tudo isso se realiza, necessariamente, por um esforço em sobreviver cujo nome que podemos usar é trabalho. Diante de tantas formas de sobrevivências, de exploração, de modos de produzir que existem no espectro humano de sobrevivência, normalmente entendemos o ato de trabalhar como sinônimo de algo sofrido, danoso, desgastante, às vezes ultrajante ou indigno, uma escravidão. De alguma forma o trabalho se estabelece como uma necessidade básica de sobrevivência que tem no sofrimento a sua possível identidade. O trabalho também pressupõe um campo de recompensa, de pagamento, de salário, de ganho de algo, de troca da força produtiva por uma forma de sustento. Pois bem, no interior das atividades humanas está a arte, que para os antigos tinha o sentido de trabalho, de uma ação humana de transformação da natureza, de uma poieses. Aos poucos a arte foi sendo separada da ideia de trabalho, o que é uma distorção muito perniciosa para uma ampla e maior compreensão do sentido maior, tanto da arte quanto do trabalho, para a existência humana. Sem adentrar em pormenores, como podemos entender a experiência humana e a dos artistas em sua relação de prazer, de ganho e de necessidade de existência simbólica, com esta forma de preconceito?

Não há sociedade sem arte. No entanto, vivemos um tempo de questionamento da arte, de crise das formas revolucionárias e utópicas de perceber, representar e imaginar o mundo. Paradoxalmente, vivemos em um momento de total alucinação de representação digital, carregados por uma avalanche de imagens, de vídeos e de produção de linguagem absolutamente despida de qualquer reflexão mais profunda. Mas os artistas continuam, persistem em seu trabalho, arrisco a dizer que o fazem por um amor profundo a existência humana e a própria vida das ideias que nos fazem caminhar como espécie. O artista é um trabalhador incansável, trabalha incessantemente em sua obra sem saber se haverá recompensa, salário, reconhecimento, qualquer coisa em troca. Age por um sentimento genuíno, por uma necessidade vital, por um amor à arte.

A separação do conceito de arte do conceito de trabalho provoca justamente uma dissolução da ideia de sobrevivência da ideia prazer. Viver é sofrer e o trabalho é a confirmação dessa condição humana. Ao trabalho é destinada a condição do sofrimento e a recompensa é o prazer do ócio que se efetiva pela via do consumo, teleguiados que somos por uma gigantesca indústria cultural.

Reconhecer a arte, não como uma mercadoria, mas como uma necessidade, uma função fundamental de elaboração psíquica do ser humano, provavelmente é um caminho virtuoso e revolucionário de viver o nosso tempo de existência com plenitude. Qualquer trabalho pode almejar se tornar uma arte, se estabelecer como um lugar de projeção de identidade, de afeto e de realização. Esta utopia é perigosa, porque ela é muito mais viável do que parece ser se a observarmos de forma diferente da maneira convencional de se entender o mundo. Isto é algo que a arte ensina. Encontrar o prazer e o amor nas ações produtivas, seja elas quais forem, seria uma reconciliação da arte, como uma singularidade presente nas ações humanas, com o trabalho. Poderia ser a tomada de consciência do que somos e do que fazemos, como gente, realizado em uma forma plena de amor pela vida e pela existência.