Salve o senhor da luz e do sol,
caçador e músico.
Salve o deus da medicina,
dono dos mais belos poemas,
senhor da lira
e da profecia.
Salve o deus de amores incompletos,
salve Apolo,
encarnação da poesia!

Quem nunca sofreu pelas duras paixões não correspondidas?

Encontrar um companheiro ou companheira ideal parece estar entre as questões mais árduas dos românticos e dos poetas. Por vezes, parece que quanto mais artística é a alma do indivíduo, mais ele se contorce na busca de um amor que o receba com a mesma intensidade com que ele próprio doa e vive o sentimento. Isto porque a singularidade de uma alma poética a faz solitária em suas criações.

Pode soar uma “tolice generalizada”, mas é fato que, para os antigos gregos, o pai dos artistas e poetas também era um solitário, além de uma atormentada alma que protege a todos os que não são amados na mesma sintonia por seus objetos de delírio, por ser, ele mesmo, alguém que jamais foi capaz de se realizar romanticamente.

Deus do sol, das artes e da cultura; símbolo da beleza masculina grega; caçador certeiro; padroeiro dos curandeiros e patrono dos Oráculos: este era Apolo, um dos deuses que mais se destaca na mitologia ― e na sociedade! ― greco-romana e que, apesar dos muitos títulos e atribuições, era condenado a ser sempre infeliz quando o assunto era “amor”.

         Apesar de ser filho de uma das milhões de paixões extraconjugais do rei dos deuses, Zeus, a vida amorosa do próprio Apolo parecia ter sido escrita por um poeta ultrarromântico: fadada a um final trágico, repleto das mais profundas emoções, paixões e tristezas. Por mais voraz que fosse sua paixão, por mais brilhante que fosse sua luz, por mais belos que fossem seus cânticos, o mais bonito e reluzente dos deuses do Olimpo era amaldiçoado com a angústia do amor não correspondido.

  Sua maldição era digna da tão conhecida filosofia de Platão sobre o amor perfeito, aquele que jamais se consome, que vive no “Mundo das Ideias”. Embora visto como o “amor ideal” para o filósofo grego, Apolo encontrava-se no meio de um infinito ciclo de sofrimento. Quase como o amaldiçoado Tântalo, mortal condenado por Zeus a viver eternamente amarrado a um rio, sedento de sede, e sempre que seus lábios buscam a água que bate à altura de seu pescoço, esta recua de seu toque como o horizonte recua dos nossos olhos. Nunca se alcança.

A começar pela bela Dafne, uma ninfa dos bosques que vivia às margens do rio Peneu. Depois de cometer o grave erro de debochar da mira de Eros ― ou Cupido ―, Apolo foi acertado no peito por uma das flechas de ouro do deus do amor no momento em que seus olhos avistaram a jovem. O desespero por tê-la foi imediato, inundando seu coração e atordoando sua mente. Eros, que guardava rancor e não perdoava ofensas, mirou uma de suas flechas de chumbo em Dafne, dando início a esta maldição que sempre atormenta o deus do sol, uma vez que as flechas de chumbo eram carregadas de repulsa e terror. Por tal brincadeira do Cupido, Dafne fugiu de um angustiado Apolo até os pés sangrarem nos espinhos da floresta, com as lágrimas queimando seus olhos. No meio da fuga, beirando o rio que era seu lar, ela implorou aos deus que vivia nas águas que a salvasse de seu perseguidor. Ajoelhando-se diante do rio Peneu, a ninfa foi transformada em loureiro. E, desde então, Apolo usa as folhas dessa mesma árvore sobre sua cabeça e as dedica aos mais bravos e vitoriosos heróis ― tradição esta que permaneceu símbolo dos primeiríssimos aos mais recentes Jogos Olímpicos ―, de modo a manter Dafne sempre ao seu lado.

O amor de Apolo, no entanto, não se dirigia apenas à criaturas divinas e imortais como deuses ou ninfas. O deus patrono dos profetas uma vez perdera-se no impetuoso olhar de Cassandra de Troia, filha do rei Príamo e irmã do grande causador da guerra entre gregos e troianos, Páris. Tão envolvido na astúcia, sabedoria e beleza da mortal, Apolo apresentou-se para a mesma em sonhos e lhe concedeu um de seus atributos divinos: o dom da profecia. Ela, em retorno, dedicou sua vida para servi-lo como sua sacerdotisa fiel, leal a suas mensagens e palavras, mas não o amava da mesma forma faminta e enlouquecedora. Ao recusar seu amor, Cassandra assinou a própria maldição. Num momento de raiva ― pois Apolo é a luz que aquece a Terra, mas também o fogo que a consome ― o deus a condenou a prosseguir a ver o futuro, mas suas palavras jamais teriam crédito entre os seus. Dessa forma, sozinha, Cassandra previu toda a Guerra de Troia e seu trágico fim, mas ninguém acreditou em suas palavras. Para os troianos, Cassandra era uma mera louca. E, por ela, Apolo também o foi.

Em silêncio, vagueava Cassandra
Nos bosques de loureiros de Apolo.
Nas profundezas mais obscuras,
Procurava refúgio a vidente
e, tirando a faixa de sacerdotisa,
Irada, exclamou, veemente:
“A todos se abrem as portas da alegria,
Todos os corações são abençoados
E os pais venerandos esperam
A minha irmã, de noiva, adornada,
Só eu tenho de penar sozinha,
Pois de mim se aparta o doce enlevo,
E, a aproximar-se das muralhas,
Vejo a destruição em seu segredo.”
                   Trecho de “Cassandra”, de Friederich Schiller.

Contudo, não foram todos que negaram o amor e o carinho de Apolo. Um, lhe foi recíproco, embora breve como um suspiro. Jacinto, filho do rei Amiclos, era um rapaz mortal cujos olhos brilhavam para Apolo da mesma forma que os olhos dourados do deus lhe fitavam; cujo sorriso era tão largo quanto; cujo coração se apertava de igual força. Era a louca felicidade de um amor correspondido, tão desconhecida pelo deus da música. Ambos, deus e mortal, passavam as tardes jogando discos, correndo pelos campos e trocando promessas imensas, que faziam aquecer e transbordar seus corações. Mas maldição é maldição, e, numa certa manhã em que jogavam discos como de costume, o lançamento de Apolo foi forte e rápido demais, e o objeto afundou-se na cabeça do amado Jacinto, fazendo o sangue jorrar na grama verde. Segurando o rapaz nos braços e depositando-lhe um último beijo, Apolo o transformou em uma flor tão linda quanto o humano um dia fora, e a chamou de “Jacinto”.

Alguns dizem que a morte de Jacinto fora um misto de maldição com “falha trágica”, outros que Zéfiro, o vento que vem do Oeste, também amava o rapaz e mudou a direção do disco que saiu das mãos de Apolo em um momento tolo de ciúme e cólera. Ninguém vai saber ao certo ― nem eu, nem você ― embora um coisa seja clara: todas as almas, mortais ou não, que buscam constantemente o amor e o carinho onde não há reciprocidade, estas têm a bênção do deus Apolo, com toda a sua poesia, sua arte, sua luz… e sua solidão.


Pintura: Robert Lefèvre